segunda-feira, 8 de novembro de 2010

vermelha



Edson Bueno de Camargo

a tarde cai
abrupta
e vermelha

nos subterrâneos
e nos subúrbios
em seus muros
necromantes desajeitados
geram um mundo deformado

origem divina

Remedios Varo - 
Embroidering the Earth's Mantle -1961 - Oil on Masonite



Edson Bueno de Camargo

as letras de todo nome
carregam no escuro
os signos de animais celestes

cada palavra
tem origem divina
e cada letra
ainda lembra que um dia
foi um vocábulo inteiro

e
esta
quando grafada
cria em magia um mundo

manancial



Edson Bueno de Camargo

hoje
a poesia me abandonou
no deserto
na beira de uma cisterna seca
com pedras em suspensão

de cada seixo rolado
abandonado ao fundo
palavras e letras se espelham

o deserto é branco
celulose selvagem
tecido fibra por fibra

a água espera em algum manancial
a língua (seca) escassa
tem pressa

as pedras enchem minha boca
em algum alívio mineral
assim como as serpentes
que fogem do sol escaldante

o deserto é um mar que morreu um dia
o sal que ficou
agora dói em meus olhos

rosas heráldicas





Edson Bueno de Camargo

teus olhos
devastam-me a pele
como rosas heráldicas entrelaçadas
e facas feitas de espelho

cobrem minha íris de estrelas
e cacos de vidro fúnebre
cortam minha carne
em delicadeza

teus dedos
são meus dedos
e cada ponta
um dígito em fogo
sua púbis
seus pelos
marca de identidade

cada tempo
traz a hora que cobre
as colheitas do trigo
as primeiras uvas
as construções antigas

todos os reis são para sempre
e mergulham um dia
no esquecimento

a velhice
é mergulhar em olvido
cada dia
distante de nós mesmos

ar seco do deserto

Remedios Varo, Celestial Pablum, 1958. Oil on masonite.

Edson Bueno de Camargo



este redondo sol lua
que mergulha lento
no concreto
dos limites de meu olho
veste-se de lágrimas cinzas
e sangue seco

céu de contrafortes
grande muralha
que afasta
os vivos dos mortos

sonho com arroz
que se derrama
e uma grande mesa com carne e vinho
servidos

os touros galopam
de assalto
cascos em chamas
asfalto que afoga a noite
o carisma dos esquecidos

forro meus olhos
do medo líquido
minha mão branca
coleção
de almas penadas

e o nariz em sangue
no ar seco do deserto
que estão estes dias

silêncios

 
 
 
Edson Bueno de Camargo

há um abismo de palavras
entre eu e meu pai
assim como havia entre ele e o seu falecido pai
e o pai de meu pai e o seu pai
até que se chegue
ao primeiro macho reprodutor de minha linhagem
como se as línguas se congelassem
no instante da palavra
em que os homens são rivais
em sua progenitura


no entanto
como a poesia se faz de silêncios
e ausências

o calar de meu pai
também me ensinou sobre a poesia

ambíguo




Edson Bueno de Camargo

um pássaro com umbigo
seria ambíguo
sua placenta
se exila de sua mãe
no nascedouro
antes mesmo do nascimento
na postura

o pássaro se desambigua
antes do ente humano
em uma exercício de desapego
muito além
de qualquer capacidade afetiva
pois o ovo
é o exílio necessário
para o vôo

isto mais tarde
lhe dará a possibilidade
de se desvincula do chão
quando do desapego
de se estar sobre a terra
vencerá a gravidade
ou a enganará segundo as medidas quânticas

há grandes vantagens aos mamíferos bípedes
crescer dentro da progenitora
mas crescer desgarrados ao contrário
nunca querem vir a luz de fato
primeiro o paraíso depois a vida
terão da altura vertigem
nunca serão capazes de voar
(ao menos alguns de nós)

répteis

Foto a partir do satélite Ikonos -Space Imaging do Brasil / Geoeye



Edson Bueno de Camargo


vomito cobras vivas
cinco ao todo
répteis que caem ao chão
e fogem assustados
ainda úmidos
sulcam a terra
desaparecem na poeira

pajés do planalto central
visitam meu devaneio
saltam de dentro
de nuvens de fumaça branca
cheiram a querosene e tabaco
pólvora queimada e pinga
moeda cachaça para todos os santos
para juremas
para os caboclos errantes
para os egúns vivos quase mortos
que caminham pela civilização
e têm nos olhos telas brilhantes e antenas

não se sabe
se é noite ou dia
céu vermelho sobre a cabeça
tempestade de areia do Saara
dormindo nas águas quentes do Caribe

câmeras assustadas filmam o abismo
desvelam línguas e palavras
uma menina pivete desafia a polícia
com seu corpo magro e olhos de assombro
um diamante vivo em cada pálpebra
Glauber Rocha ressuscitado em Brasília
dirige tudo aos berros e euforia
(como todo bom baiano
sorri irônico como um Caetano)

tudo é sonho
tudo é vermelho
tudo cheira a esgoto a céu aberto
tudo cheira a vidro quebrado e hospital

as mesas dos botecos se embriagam
devoram as palavras que os poetas lhes derramam
lambidas por lagartos abissais
a cidade (e suas asas)
é um poço sob os discos voadores

degraus vermelhos




Edson Bueno de Camargo

a velha casa
espera-me em sonhos e pesadelos
como o desvão
de fraturas no cimentado
e nos vãos da calçada de tijolos refratários
(e suas superfícies vítreas)

assim como as rangedoras portas e janelas
taramelas que cantavam
anunciando as chegadas e partidas

os lumes tentavam
desesperados furar o escuro da noite
onde vaga-lumes verdes
emitiam estranhos sinais
e olhos infantis e medrosos
viam coisas em meio às sombras

noites sem lua
noite de assombro
de ouvir as formigas subindo na parede
e monstros sorridentes sobre o guarda roupa

piar de coruja
nos velhos esteios
silvo de vento que cortavam
as dobras dos corredores

a velha casa
sobrevive ao seu fim
a jovem que cresceu sobre suas raízes
ainda é árvore de seus tijolos

o tempo não comeu suas paredes
de argamassa de caulim e terra
de reboco que mostrava suas veias no verão
na caiação trincada
desenhando mapas imaginários
de lugares inexistentes
(mas ali presentes)

a velha casa
e sua varanda de degraus vermelhos
carrego-a nas costas
o tempo todo

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

dívida com o mar





Edson Bueno de Camargo


quando o mar
devolver seus mortos sem sepulcro
estarei na praia
a esperar meus amigos

abraçarei seus ossos mareados
que lavarei com cuidado e zelo
e lhes darei o devido enterro
cantarei canções de ninar cadáveres e esqueletos
e lembrarei mais tarde
ao som de tambor
ao redor de uma grande fogueira
do dia em que fiquei para trás esperando

pois que eu tenho uma dívida com o mar
assim como ele me deve
por isso não consigo mais andar sobre a s águas
nem posso ter pedras dentro da cabeça
ao modo dos peixes
nem dormir agarrado a remos
no fundo de barcos de longo calado

penso nas marcas dos pés sobre a areia
e no dia que sai da casa de meus pais
para não morrer no mar

sei que lá estão meus companheiros
em paciente espera do dia
que o mar nos devolva todos a vida

sexo dos insetos



Edson Bueno de Camargo




1

este ano
o inverno foi mais duro
nossos ossos ressequidos? gastos?
desenham o frio em cada cristal de cálcio
depositam flores de crisântemo
sobre o barro cozido

as estrelas mortas
vivem, em nós
fizeram-se carbono e carne
e querem nos devolver á terra
nossas dores pedem descanso
mortos não sentem nada

a água já não mata a sede
é amargo o alimento
morrer é como dormir
nos braços da mãe
sem ter de acordar depois
neste estranho salmo sem deus

2

o silêncio da casa
tenta estancar
o vento
que jorra lá fora
( o céu enferrujado engendra
furacões em seu ventre)

as flores da pitangueira
caem estéreis
sem o sexo dos insetos
não pode haver frutos nesta primavera

os sapos coaxam a noite
que hoje
se constrói sem lua e estrelas

sangue



Edson Bueno de Camargo



1

dançarinas de ventre
rodopiam espirais
na chama sagrada

cabelos com espigas
e vindimas
umbigos iluminados

2

olhos de gato
(deuses guardiões)
visão de escuro
um punhal em miniatura

tudo se repete esta noite
desde a noite primeira

unhas e dentes ferozes
matam e sangram na graça

a beleza também está
na seiva humana
que verte nas pedras

3

os deuses não bebem sangue
de ímpios e impuros
os deuses bebem nosso sangue
se merecermos

mas nosso sacrifício é em vão
se o coração verdadeiro não for imolado
só o amor é a paga perfeita
só que nos é mais caro é dádiva

4

na sala dois relógios parados
como se o tempo não perpetrasse ali
como se na falta de horas e minutos
outra coisa fosse devorada

a morte do tempo é a entropia
não é possível vida
sem morte

tátil e cego



Edson Bueno de Camargo



enquanto corro
os dedos em tuas costas elétricas

minhas narinas
devoram tua pele e pelos
naquilo que são fogo
e cada contorno volátil
é abrigo e assento para meus olhos



tátil e cego é o amor
nos abismos florestais
ou ralas pradarias
pois tudo é triangulo e ravina

posso lamber teu cheiro esta noite
e nas outras e outras
e as gotas
da chuva de pentes para cabelos
e pedestais e pedrarias



estar em ti
é tudo que posso e quero

profecias


Duda Groisman/FotoRepórter/AE



Edson Bueno de Camargo


para Roberto Piva

o velhote
(e suas barbas cinzas)
devora as pedras do calçamento
risca fogo
com seus dentes de urânio
e nicotina pétrea

papeis soltos
em meio ao vento
remoinhos
acalentam o meio-fio desta cidade de plástico
todos com cuidado coletados
(podem conter os nomes de deus)

restos de nobreza
em frangalhos de sedas e brocais
(mantos cerimoniais e clericais)
sua carruagem
de pneus arruinados
e alma de geladeira devastada

sua fome de granito
contorna a tormenta da tarde
pedras devolvidas
em graduais ondas de palavras

o senhor de cabelos de fios elétricos
cinza telefônico
é perfeito arauto de seu tempo


o velhote é um profeta
mas não o ouvimos

meteoros

Chuva de Meteoros (The Perseid Meteor Shower)


Edson Bueno de Camargo

encontro o deserto em mim
caminho semana em trilha rasa
as pedras dormem aos meus passos
onde brotam espinhos e flores

o espaço se corta em dois
e cantam as estrelas
os cântaros de aquário
nunca se esvaziam
e teu olhar é um rosa de seda azul

minha língua em chamas
te cobre de cintilações
e colhem os vespeiros maduros
de um mel grosso e escuro
(tempo de macieiras em flor)

aninho me na areia
como cama macia
sou vigiado por escorpiões vermelhos
e o chacal
sonho com uma mãe terna
a me abrigar com seus zelos

no sonho nosso amor
une átomos e estrelas
enquanto estou a mastigar
todos os meteoros possíveis
de teus cabelos




Exercício de criação 2 – Gambiarra Literária
19/08/2010
http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2010/08/exercicio-de-criacao-2.html

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Prêmio Blog de Ouro.



Recebi este selo como agrado do poeta Assis de Mello, ao qual agradeço, que me deu como incumbência, distribuí-lo a mais dez blogs, com grande dificuldade em separar amigos, estou repassando à estes dez que seguem na lista, que recebem a tarefa de fazer o mesmo. Dez é um número pequeno para coisas ótimas que tem por ai.

Que tem me acolhido tão gentilmente - 
http://serescoletivos.com/

Duplamente Venusiana - da Sara Helena/Filhote de Lua
http://duplamentevenusiana.blogspot.com/

Do grande poeta José Carlos Mendes Brandão que tem de ser lido.
http://www.poesiacronica.blogspot.com/

Lobas que Correm – blog que fala e desvenda a psique feminina.
http://lobasquecorrem.blogspot.com/

O ofício do ócio de Jorge de Barros, para lembrar que escrever também é um ato de preguiça.
http://ooficiodoocio.blogspot.com/

Do poeta confrade José Geral do Neres, parceiro de luta e poesia,
http://neres-outrossilencios.blogspot.com/

Do poeta necessário Lau Siqueira
http://www.poesia-sim-poesia.blogspot.com/

De la maestra Beth Brait Alvim pela delicadeza/crueza de tuas palavras.
http://www.bethbraitalvim.blogspot.com/

Da poeta da imagem Sônia Brandão, poesia e fotografia
http://passaroimpossivel.blogspot.com/

Das Loka – Ativismo GLTB organizado entre ótimas pessoas, sendo uma delas o meu primo o poeta André Camargo (Porque direito é para todos.)
http://www.daslokabrasil.blogspot.com/

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

sombrinha de doze varas



Edson Bueno de Camargo


1

sombrinha de doze varas
sobre o pano
dormem quinquilharias

“compra senhoro”
a mulher tem cabelos brancos
e sotaque romani

a cigana insiste
guarda-chuva chinês de muitas cores
buquês de flores
transbordam cores na seda falsa

(está caro
penso
não compro)

“faz mais barato
paga diferença depois”

já não ouço mais
minha mente já está longe
rouba o cinza do céu
e dos olhos que me fitam
uma certa indiferença

2

a árvore morta
serve de moldura
a fotografia que não tiro
(esta será só com os olhos)

pequenos pássaros
na distância parecem pretos
hoje o dia está com pouca luz

3

flores de dente de leão
pedem o sol
que a tarde nos nega

sua cor destoa
do que nossos olhos esperam




4

a mangueira
tem tantas flores
que lhe pedem os galhos

não sabe a planta
não estar em um vale
ensolarado do Ghanges ou do Indo

faz o papel ambíguo
de florescer neste planalto frio
a guardar o silêncio do horizonte esbranquiçado


5

nada muda o que sinto
a tarde só fala o que está dentro de mim

contas de vidro



Edson Bueno de Camargo



doses de amargo
quebram as pétalas das flores
em agridoce semelhança com a vida
(mas ainda assim desigual)

pagar o dízimo
das contas de vidro perdidas
entre os dentes
e caídas
dos dedos senis e trêmulos

o amor é uma construção permanente
o cimento que une o universo
e há mais metafísica
em olhares adolescentes apaixonados
(e seu brilho doentio)
do que nos arcanos
das esferas orbitais de júpiter
e contornos oculares de Galileu
(suas derradeiras ferramentas)

o ósculo da matéria
cinco segundos antes da destruição total
nos revelará de vez
a verdadeira verdade

mas ai será tarde

nêsperas verdes

Edson Bueno de Camargo


em gravidades
raízes minerais da casa
se afundam em uma alma de granito
buscam o coração do leito argiloso

a casa adquire
conotações vegetais e fractais
de crescimento áureo
matemática de ouvidos sonoros
de esferas
e música pitagórica

as estrelas se derramam
sobre o quintal sem luz
de interruptores fechados
e nêsperas verdes

as crianças no escuro
escondidos em olhos algozes
com asas de corvos agourentos

as feridas cobertas com as penas rotas
de ave jovem
renovadas em tombos breves
joelhos arruinados penitentes
e cotovelos cascudos

:

no calor das tardes de verão
a luz que agredia os olhos
era a grandiloqüência de deus
em nossos corações
e braços abertos no vento

mas tudo tem seu fim

orgânica



Edson Bueno de Camargo


a paisagem urbana
se amarra ao por do sol
em cabos elétricos e postes
luminárias de fogos ardentes
ao tomar ares de nave espacial venusiana

os fios costuram o céu
em armações e nervuras
como capilares sanguíneos
que se enredam por toda cidade
onde sangue de elétrons
transportam movimento e números

as construções buscam a luz
competem em devorar horizontes
dia a dia
jardins estéreis da babilônia
recobrem a terra ao infinito

muralhas sem reboco
babel que nunca termina
devora cimento virado nas calçadas
em manhãs de domingo
fome insaciável de pedra e cal
e lajotas vermelhas
que nunca cobrem suas vergonhas

a cidade é orgânica
monstro vivo e cada vez mais lento
e somos os parasitas
que habitam a sua barriga

múltiplas bocas


Edson Bueno de Camargo


o céu carrega paradigmas
para que se sustente
sobre a cabeça dos homens
antes da própria existência do ser

a vida tomará o lugar da vida
em uma teimosia ímpar
em uma bela certeza
que sobre cadáveres brotarão flores

(a morte para a natureza
significa a continuação da vida
simples mudança de forma
e aproveitamento de energia)

tudo está em tudo
e como vida
já experimentamos todas as coisas
e estivemos em todos os lugares

(o tempo
monstro de múltiplas bocas
a tudo e todos devora
a transportar para o futuro)

sábado, 17 de julho de 2010

dragão

S. Jorge (Franceschini, 1718)



Edson Bueno de Camargo

e toda profecia
que lhe saía das mãos
era uma sentença torta
epístolas postas na mesa
sem direito e direção

era festa na aldeia
ou se assemelhava
algo que voava
entre fitas lilases
e milagres de vinho e pão

e todo vento
que me chegava
era embriagado
estopa embebida em vinagre
deuses bentos em oração

e sob luz de candeias e voltas
toda a reza tinha um certo destino
olhares de menina triste
rosas verdes no parapeito
e medo de assombração

naquela noite não dormi direito
São Jorge não era meu amigo ainda
olhava-me firme junto à janela
com o cavalo empinando
e debaixo mais condescendente
com todos os seus dentes
ria de mim o dragão

corvos

Campo de trigo com corvos -Vincent Van Gogh





Edson Bueno de Camargo

a casa está
vazia e fria
pedaços fossilizados de silêncio
nos esperam no corredor

(serão pacientemente varridos
para debaixo do armário)

no céu
corvos agourentos
voam em círculos
em torno da lua que expira

(minha cabeça
que buscam)

estilhaço

http://www.flickr.com/photos/lclaudio/



Edson Bueno de Camargo


um pássaro aberto no vento
em atitude
de desvendar continentes
e derribar abismos
a partir de um estilhaço
de ferro no centro do cérebro

fazer a corte
às pedras
(sina de gigantes)
e sua dor consistente


dobrar o espaço em partes semelhantes
como colcha e lençóis
aproximando as realidades
no quântico hino do poema
e sua alquimia léxica

tudo se consome em espelhos
lavados em sangue limpo
de línguas mutiladas
pelo duro cristal da palavra
lavrada em vidro vulcânico

com letras fincadas na pele lisa
vão dos dedos
a membrana que lembra
que já fomos filhos da água


(a ave mergulha no mar
com a certeza líquida
que o oceano não é sólido)

açucareiro



Edson Bueno de Camargo

perdidas formigas
insistem em atacar o açucareiro
(fortaleza inexpugnável de plástico)

e observo todos os seus fracassos
(e secretamente comemoro)

a vida deve ser isso
um imenso açucareiro

nós sabemos como abri-lo
e não fazemos

vermelho



Edson Bueno de Camargo

brotam dos joelhos
rosas de carne
como vestes que devoram trigais
pomares
e olhos espiões

vermelho de amoras silvestres
em meio ao verde pastel peludo
e grama rala

os dedos espigas
de flora selvagem

cordames de verde
delicado e doce
a enlaçar o ar

éramos cães vadios nas ruas e terrenos baldios
deste arrabalde

sexta-feira, 16 de julho de 2010

velho rádio



Edson Bueno de Camargo


às vezes
admirava-me
quando olhavas sem sorriso
e a noite engolia teus cabelos
mergulhados aos poucos em uma grande tina

a água que refletia estrelas
e a luz morta
que atravessou o espaço
e o lago de teus olhos imensos

desejo de chorar em escamas
abraçadas aos cântaros

escadas para o céu
tocavam insistentes no éter
e no velho rádio na sala

e esta cozinha
era uma pista imensa de deslizes
não mais sabia
que viver não era mais que isso
catar fragmentos de raios cósmicos
que perfuravam o vidro da janela
e observar lento e persistente
a chama de uma vela ao se consumir
incorporando seu combustível ao ar
até que este se extinga

meus papéis senis perdidos de seu sentido
e livros amontoados aos cantos e estantes indeléveis
poetas vociferando canções lúgubres
marcha soldado sem direção
e rebeliões que se dissolviam em terebentina e álcool

:
enquanto isso
cebolas e batatas ferviam
em borbulhantes panelas
com seus diálogos e estouros e borbulhares

eu olhava pelos vidros
e com um dedo infantil
garatujava um nome na neblina
enquanto olhos me observavam da possível floresta

nós nascíamos todos os dias como narcisos
e voltávamos e voltávamos sempre

o horizonte



Edson Bueno de Camargo


uma linha morta
que traça mortalha de montanhas
que vemos
mas ali
não estão

geografia



Edson Bueno de Camargo

todo dia
um horizonte novo
se cria em minha janela

geografia que pássaros trazem
florestas incrustadas nas garras
ou andaimes de guindastes gigantes
com força titânica a empilhar viadutos

a janela que sobrou da velha sala
a que dá para o quintal
dos fundos
é a janela para outro mundo
a pores de sol coloridos

as auroras se costuraram
em alinhavos de cores quentes
e a medida que anoitece
se transladam em cinzas de azuis

Zabé da Loca







Edson Bueno de Camargo



és como foi minha avozinha
lenço amarrado na cabeça
olhos grandes de olhar comprido
destes que devoram tudo com carinho
e cuidado
gente de granito e pés suaves
mesmo para trilha de pedras

muheres com dobras e rugas
quase uma centena de anos cansados
rostos com sombras
e o dedo com o osso apontado

mulheres de parar o vento com o silêncio
e mover pedras com o sussurrar
constroem casas com barro
cacimbas no seco
donas da terra e da água
e  aproximam o ventre do ar


senhoras que vestem o mundo
e tecem com os panos
e fiam o algodão das nuvens

ai que os anjos esfarrapados da caatinga
os anjos vaqueiros e pascentadores de bodes
os anjos moleques a tramar travessuras
os anjos de todas as partes e os afogados
e o louco poeta na margem da metrôpole

todos param para ouvir
um pedaço de cana soar as trombetas do céu
 
 

segunda-feira, 28 de junho de 2010

brasílica cidade




Edson Bueno de Camargo

para Dom Bosco, o visionário

dobro esta cidade
em folhas de papel

burgo imaginário
conto de fadas

desenho quase infantil
de uma deusa egípcia

coração de aço
a se amarrar
em vergalhões escondidos
sob tanto cimento

como me toca o coração
em nevoentas saudades
de um planalto
que não é o meu velho planalto


por que este sentimento antigo
por um lugar onde nunca
plantei meus pés
?




Poema por ocasião do Cinquentenário de Brasília.

a parte que te cabe





Edson Bueno de Camargo


para o amigo Celso de Alencar

Circe
amarrou a Ulisses
com não correntes
usou os músculos de sua vagina

mesmo estando em êxtase
a saudade de seu chão
e do cheiro do esterco das ovelhas
o chamavam para casa
e se libertou

Circe disse fica
mas Ítaca clamou mais alto

o esperava em casa
uma vagina mais mansa
e doméstica
sem grandes bailados
e malabarismos
mas que demonstrou um furor selvagem
ao se fechar aos machos
que não eram para ela

e na vingança e na morte
se abriu em sorriso
enquanto seu homem
trespassava seus adversários com flechas

nas noites que se seguiram
Ulisses não sentiu saudades
da insaciável bruxa deusa

Penélope
cansada de tecer
exigiu a parte do homem
que lhe cabia

potes paridos

Antigo Pinax coríntio mostrando o interior do forno.

Edson Bueno de Camargo

o bloco de granito
em seu sonho de sílica e alumínio
respira pratos e xícaras

inspira para o interior da terra
o calor de fornos de mil graus

a terra bebe a sede
água de potes
de artesanía incomparável

potes paridos
por oleiros besuntados de argila
homens cinza
homens barro
e cabelos emaranhados de porcelana crua
árvores humanas
e seus frutos torneados a frio

poteiros com os pés fincados
na terra agora úmida
e depois matéria prima que seca ao sol

o chão da oficina
é fábrica e útero do mundo
da criação dos seres e das coisas
da lapidação de deuses inconscientes
o calor da fornalha
que a tudo devora
e ama

domingo, 27 de junho de 2010

raízes

“Raízes de uma Janela para o Futuro” Leandro Alvarez de Lima




Edson Bueno de Camargo


meus pés se ficam
como raízes e árvores
nesta casa


minha voz está em suas paredes

esquizofrenia


O GRITO -(Edvard Munch)

Edson Bueno de Camargo


dou passos ao acaso
e como diz o poeta Antonio Machado
a estrada se cria sob meus pés

sempre quis ser um artista plástico
o poeta entrou em minha vida de contrabando
junto o músico que menosprezei

o poeta é o mais persistente
dos sintomas
de minha esquizofrenia

incertos

Edson Bueno de Camargo


gosto de observar
o desenho
que o vento faz
com as folhas na rua

o outono
é a época das imagens
dos incertos

outono



Edson Bueno de Camargo

o outono me trouxe um gato morto
em frente ao portão
jazia hirto
com uma moldura de folhas em torno

o vento
o acalentou na morte

será que o gato
que morreu à minha porta
buscava alento nos fantasmas
de outros gatos
os que perambulam
pela minha casa
?

quarta-feira, 2 de junho de 2010

as pálpebras

By - CarolMe




Edson Bueno de Camargo


as pálpebras
alquebram
em sono senil

as sombras
são pedras duras
de quebrar
em sonhos

o pão
não alimenta
a mão
que morde
os dentes da fome

a palavra vai
para além
destas fronteiras agudas
repousam na língua

ali se cristalizam
em gotas calcárias
e músculos

paralelos



Edson Bueno de Camargo


as águas correm em paralelos
os papiros desenham o vento

há um Nilo esverdeado de esmeraldas
correndo em nosso sonho

o que não vemos

de outra feita



Edson Bueno de Camargo


há um esforço
para que a luz
chegue aos olhos

um milhão de anos
do centro à superfície do sol

a luz atravessa
já cansada e antiga
a nossa retina

de outra feita

como capturá-la

conhecer (ou anzol)



Edson Bueno de Camargo




há momentos
que somos escravos
da sede de conhecer

o peixe
morde a morte
mais por curiosidade
que por fome

sufocada



Edson Bueno de Camargo



descanso a mão
sobre o parapeito da janela

a paisagem é aos poucos sufocada

o azul do céu
não está mais

terça-feira, 1 de junho de 2010

enxame



Edson Bueno de Camargo



nas escadas
os anjos sobem e descem


minha vida
(em um enxame de abelhas)
se esvai pela boca

nos varais



Edson Bueno de Camargo



nos varais
sonhos em fios e pregadores
secam ao sol inclemente
de verão

espera

Edson Bueno de Camargo



vestido pousado
aos pés da cama
(a lembrar ainda
conter teu corpo)
denota a tua ausência

mas é em mim
que se faz sentir mais

esquecimento



Edson Bueno de Camargo


o corredor da casa nova
engole rajadas de vento
e folhas soltas

o esquecimento
esfria mais o ar
que este vento polar
que lembra inverno

universos

Foto: Gerard Vlemmings



Edson Bueno de Camargo


o menino
cria universos
no céu que vê
refletido nas poças da água

terça-feira, 11 de maio de 2010

René Magritte

René Magritte, La Reconnaissance Infinie (1963)

Edson Bueno de Camargo




no alto de um poste
um homem lê um livro de poemas
a paisagem corre
vertiginosa à sua volta

aquela silhueta
imprime ao horizonte
um não reconhecimento da lógica

o homem lê absorto
em confortável estética
como se fios invisíveis
desenhassem suave poltrona

o olho observador
vê uma queda
iminente demonstração
das leis de Isaak Newton
ou seja
a queda como a de uma maçã de uma árvore

não há construções
de toda a filosofia disponível
que sustentem um homem no ar
ou pior
no alto de um poste de eletricidade

para nós que o vemos
em tal posição de perigo
inspira o medo e a inveja

indiferentes ao homem
e o possível dilema alertado
dois corvos
alçam vôo
criando duas manchas
no azul perfeito do céu da tarde

“sonho com serpentes”

M. C. Escher


Edson Bueno de Camargo

“Sueño con serpientes, con serpientes de mar,
con cierto mar, ay, de serpientes sueño yo.”
(Silvio Rodríguez)


que se envolvem entre si
em carne viva
em exposição
em expiação sangrenta

ninho coleante
e viscoso
gangrena dos ossos
vulcão orgânico e pestilento
de ovos
de larvas
de morte lenta adiada

tenho muitos olhos
tenho muitas bocas
e muitas línguas todas bífidas
o cheiro do medo buscam

sonho que estou vivo
(quando morto)
e andando
não caminho um metro sequer
sufoco em líquido
e meus movimentos são pulmões afogados
me afundam na areia movediça
nada me conduz
sob este céu insano

falo o som das escamas
dos estalidos de pequenos ossos
e palavras
com o fogo feroz
dos olhos animais acuados
fogos fátuos
e versos metálicos da palavra réptil

“sonho com serpentes”
e estas me devoram os olhos

quinta-feira, 25 de março de 2010

tudo o que me pedes



Edson Bueno de Camargo


se tudo o que me pedes
é meu olho
ainda quente
sobre a palma rósea
desta mão de luas novas
(e gelo orgânico )


deixa ao menos
que veja o Sol se quebrando
sobre as costas azuis das montanhas
entre frestas rutilantes
das entranhas da luz

desde teus cílios
molhados pelo orvalho
a correr sob as pálpebras
de ágata leitosa

este majestoso fogo
em espectros de infra-vermelho
desta gigante agonizante em tua íris

ah! mãe dos deuses
(das mulheres de ventre de barro e lava ardente)
que me reste agora a escuridão
de antes de ter nascido
do mar salgado de tuas vestes

eis que voltamos sempre
ao lugar que em êxtase e dor
nos gerou

a luz para Fabrício Carpinejar.



Edson Bueno de Camargo



janelas engolem o sol por inteiro
e o golfam em forma de luz
para dentro da casa

há uma violência
no trespassar dos fótons pelo vidro
há uma dor sílica
destilada em fornos ardentes

o coração da luz
é deveras delicado
cristal indelével
que se rompe e se apaga

a qualquer momento
somos devolvidos à escuridão

teias de aranha



Edson Bueno de Camargo

1

o ar aroma de baunilha
a casa em descanso
como se a faina do dia
constituí-se de miúdas pedras

e em cada cristal
pétalas de flores
luz branca
que nos cobre
lençol de nuvens baixas
e murmúrios


2

pássaro envolto em gravidade
(que engana)
com pena de chumbo
e convertidas em falso ouro

não voa
não trina
apenas treme de frio em um pires
expulso dos ninhos

bica os amarelos do mundo
(a seus pés)
farelos de gente ausente
(em pânico)


3

tudo bem dependurado nas árvores
em anárquica harmonia
teias de aranha
de grande arco de tempo
vergados móbiles ao dobre do ar

no fio oculto da urdidura
cose nosso destino (às cegas)