sexta-feira, 14 de novembro de 2008

sublime

Edson Bueno de Camargo


a criança carrega um Sol na mão
seu calor atinge à todos
(sua luz nos cega indolor)
há uma claridade terna
que envolve

a criança tem um colar de corações fossilizados
roubados àqueles que não sonham
dedos que estão vermelhos de luz atravessada
e não queimam
dentes que transbordam
um sorriso branco
ártico e límpido
de aurora boreal
e caminhadas de ursos brancos sobre a neve
de filhotes de foca
e língua de azul celeste

a criança tem pés suaves como raízes profundas
em busca da água mais fresca
e joelhos de nós de pinheiro
duros como pedra orgânica
e que precisam arder para brotar
cabelos de profunda noite sem fogueiras
(das que carregam medo em seu ventre)
e cheira como a brisa primeira do dia
entre os girassóis

a criança sussurra com lábios
de mel pela primeira vez
voz de pássaro solto da gaiola
de prisioneiro libertado de prisão injusta
e ainda assim silente

a criança fala seu verdadeiro nome
mas surdos ao sublime
não escutamos

extinção

Edson Bueno de Camargo


1

trilha de peixes
sobre a areia do deserto
suas manadas errantes
levantam poeira sob a lua
a sina de nunca fechar os olhos
e ter sonhos ainda acordados

costuram a noite em dias
guiam-se pelo magnetismo da terra
possuem imãs mergulhados em seu cérebro
as pedras que lhes dão equilíbrio
carregam o cálcio
o metal calcinado dos ossos

não são serpentes
e suas trilhas sinuosas entre as pedras
mas carregam no ventre escamas para o movimento
em nenhum momento param
o ir é todo o destino a que se reservam


2

as estrelas assistem ao longe nossa extinção
testemunham os nossos sofreres
brilham independentes de nossas lágrimas

à distância tudo é belo e completo
mas as pequenas coisas
é que de fato são importantes

ideogramas

Edson Bueno de Camargo


que escrever sobre a pele
é difícil exercício
conhecer os ideogramas necessários

cada traço com descuido
torna-se corte
e incisões desnecessárias
com o tempo
em traumas
uma memória na epiderme
passam a ser palavra-tatuagem

há de se compreender toda a dor esquecida
porque a dor não olvidada
será lembrança muito profunda
e nas profundidades se perderão da razão
pois a dor sem razão
é vendeta

o tato do talho mal escrito
é desagradável
provoca sensações de medo e escárnio

porque a navalha mais cortante é a da língua
aço de carbono temperado
com o ferro do sangue exato.
caco de vidro de lâmpada
retalha a carne antes da pele
talha a si mesma no ato
serpente que morde a própria cauda

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

azaléias

Edson Bueno de Camargo


hoje à tarde
as azaléias voltaram a florescer
dando ao jardim um certo ar de arte zen

não me canso de observá-las
até que o olho se transborde em lilás
recordo as palavras do velho mestre (medite)
comungo com este estar
que se dilui em verde
o universo tomou seu assento em nossa casa
neste pequeno pedaço de terra que deixamos livre e verde

esta tarde tudo me retorna ao nosso amor
da juventude que trespassa
nossos corpos velhos e cansados (e nem sempre vence)
de quanto o meu desejo ainda é novo e terno
é calor e sol
de como minha boca é solidão sem teus lábios

olha o chão
tapete ruidoso de folhas
água da chuva que impõe sua presença
a primavera que chega
há mais aves no céu
e a neblina molha os teus cabelos
sinto ciúmes de algo que consegue te envolver com tanta intensidade
fria sob o Sol
feito brisa marinha com sal e susto (e o mar tão longe)

as azáleas ainda não se acostumaram
à nova casa
não pintamos suas paredes (mas vamos)
há no entanto um piso recente sobre o cimento
e nossas orquídeas e bromélias servem de playground aos gatos
a pitangueira agora branca
reinventa uma estação

medito sobre os propósitos da existência humana
não existem
só sei que te amo mais hoje
do que quando te vi pela primeira vez
nas escadas da escola
imagem que morreu no templo dos infinitos

arremedo

Edson Bueno de Camargo


uma linha negra
cruza o papel
formam-se sombras e garatujas
como um deus infantil
criança de vidro
criando um esboço de mundo

aqui um arremedo de árvore
ali um boneco de riscos
uma figura de arame sem carnes
é a criança construtora de mundos
e seu lápis simples
que contém a possibilidade do ponto
o grafite carbono que esta em toda a vida
o papel banco por ausências

é necessário a não cor
para sentirmos à necessidade deste espectro

a colheita

Edson Bueno de Camargo


abriram-se os olhos do tempo
vergas bem colocadas da nau
o vento vai além destas paredes
e a construção do grande sonho

há pássaros demais
a pousar no fios
são muitos a nos observar

há uma multidão na porta da sala
há um pavor crescente nestes corações
os homens recordam das mães
as mulheres dos filhos que nunca tiveram
ou dos que já se foram
(não sei o que dói mais)
ou perderam os que serão

é chegado o momento
em que a colheita é mais importante
que o plantio

bordas

Edson Bueno de Camargo


as bordas das xícaras
são círculos perfeitos
espessados em branco
também o são
os contornos perfeitos
das laterais dos pires
( e assim também suas almas de porcelana)

as bolhas de espuma
esferas exatas que habitam
a superfície do café
lembram planetas perdidos
que não cumprem mais destinos selados
pedaços de ar que se desprendem do líquido
parcelas de tudo o que quer ficar