quinta-feira, 7 de outubro de 2010

dívida com o mar





Edson Bueno de Camargo


quando o mar
devolver seus mortos sem sepulcro
estarei na praia
a esperar meus amigos

abraçarei seus ossos mareados
que lavarei com cuidado e zelo
e lhes darei o devido enterro
cantarei canções de ninar cadáveres e esqueletos
e lembrarei mais tarde
ao som de tambor
ao redor de uma grande fogueira
do dia em que fiquei para trás esperando

pois que eu tenho uma dívida com o mar
assim como ele me deve
por isso não consigo mais andar sobre a s águas
nem posso ter pedras dentro da cabeça
ao modo dos peixes
nem dormir agarrado a remos
no fundo de barcos de longo calado

penso nas marcas dos pés sobre a areia
e no dia que sai da casa de meus pais
para não morrer no mar

sei que lá estão meus companheiros
em paciente espera do dia
que o mar nos devolva todos a vida

sexo dos insetos



Edson Bueno de Camargo




1

este ano
o inverno foi mais duro
nossos ossos ressequidos? gastos?
desenham o frio em cada cristal de cálcio
depositam flores de crisântemo
sobre o barro cozido

as estrelas mortas
vivem, em nós
fizeram-se carbono e carne
e querem nos devolver á terra
nossas dores pedem descanso
mortos não sentem nada

a água já não mata a sede
é amargo o alimento
morrer é como dormir
nos braços da mãe
sem ter de acordar depois
neste estranho salmo sem deus

2

o silêncio da casa
tenta estancar
o vento
que jorra lá fora
( o céu enferrujado engendra
furacões em seu ventre)

as flores da pitangueira
caem estéreis
sem o sexo dos insetos
não pode haver frutos nesta primavera

os sapos coaxam a noite
que hoje
se constrói sem lua e estrelas

sangue



Edson Bueno de Camargo



1

dançarinas de ventre
rodopiam espirais
na chama sagrada

cabelos com espigas
e vindimas
umbigos iluminados

2

olhos de gato
(deuses guardiões)
visão de escuro
um punhal em miniatura

tudo se repete esta noite
desde a noite primeira

unhas e dentes ferozes
matam e sangram na graça

a beleza também está
na seiva humana
que verte nas pedras

3

os deuses não bebem sangue
de ímpios e impuros
os deuses bebem nosso sangue
se merecermos

mas nosso sacrifício é em vão
se o coração verdadeiro não for imolado
só o amor é a paga perfeita
só que nos é mais caro é dádiva

4

na sala dois relógios parados
como se o tempo não perpetrasse ali
como se na falta de horas e minutos
outra coisa fosse devorada

a morte do tempo é a entropia
não é possível vida
sem morte

tátil e cego



Edson Bueno de Camargo



enquanto corro
os dedos em tuas costas elétricas

minhas narinas
devoram tua pele e pelos
naquilo que são fogo
e cada contorno volátil
é abrigo e assento para meus olhos



tátil e cego é o amor
nos abismos florestais
ou ralas pradarias
pois tudo é triangulo e ravina

posso lamber teu cheiro esta noite
e nas outras e outras
e as gotas
da chuva de pentes para cabelos
e pedestais e pedrarias



estar em ti
é tudo que posso e quero

profecias


Duda Groisman/FotoRepórter/AE



Edson Bueno de Camargo


para Roberto Piva

o velhote
(e suas barbas cinzas)
devora as pedras do calçamento
risca fogo
com seus dentes de urânio
e nicotina pétrea

papeis soltos
em meio ao vento
remoinhos
acalentam o meio-fio desta cidade de plástico
todos com cuidado coletados
(podem conter os nomes de deus)

restos de nobreza
em frangalhos de sedas e brocais
(mantos cerimoniais e clericais)
sua carruagem
de pneus arruinados
e alma de geladeira devastada

sua fome de granito
contorna a tormenta da tarde
pedras devolvidas
em graduais ondas de palavras

o senhor de cabelos de fios elétricos
cinza telefônico
é perfeito arauto de seu tempo


o velhote é um profeta
mas não o ouvimos

meteoros

Chuva de Meteoros (The Perseid Meteor Shower)


Edson Bueno de Camargo

encontro o deserto em mim
caminho semana em trilha rasa
as pedras dormem aos meus passos
onde brotam espinhos e flores

o espaço se corta em dois
e cantam as estrelas
os cântaros de aquário
nunca se esvaziam
e teu olhar é um rosa de seda azul

minha língua em chamas
te cobre de cintilações
e colhem os vespeiros maduros
de um mel grosso e escuro
(tempo de macieiras em flor)

aninho me na areia
como cama macia
sou vigiado por escorpiões vermelhos
e o chacal
sonho com uma mãe terna
a me abrigar com seus zelos

no sonho nosso amor
une átomos e estrelas
enquanto estou a mastigar
todos os meteoros possíveis
de teus cabelos




Exercício de criação 2 – Gambiarra Literária
19/08/2010
http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2010/08/exercicio-de-criacao-2.html