sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

o cubo

Edson Bueno de Camargo


ainda o útero terroso
caminha de mãos dadas
as odes ao outro calar

ruídos acompanham o passado do vento
outra ordem das coisas
buscam asilo em teus olhos


o cubo
o feminino perdido da antiguidade
de homens que se emasculam
de modo sagrado
e emanam o sangue aspergido à terra
à maneira da menstruação das mulheres

estas sim que sempre fertilizam o chão
garantem que as sementes germinem

quartos de inverno

Edson Bueno de Camargo


guardar folhas em casamatas
para os quartos de inverno
após a hecatombe nuclear

virar-se para o lado direito da cama
e mergulhar no esquecimento

observar o minguar de uma rosa em um copo
até que caiam as últimas pétalas

assim estar preparado para o poema
que cruza avenidas em tardes de inverno
esquece os caminhos dormidos
e recolhe o perfume das coisas já mortas

única linha

Edson Bueno de Camargo



dissecar com delicadeza asas de borboleta
nervura por nervura expostos
até que não reste única linha

com os pedaços de cores
montar um mapa de buscar precipícios da alma

beber as bordas da lua nova
à luz rarefeita de olhos castanho-claros molhados

ocaso da tarde

Edson Bueno de Camargo


o instrumento de percussão do grilo
preenche com sua música
todo o espaço de um quarto
ao término do dia

a escuridão que vem com o ocaso da tarde
pede aparelho mais preciso
e outro tipo de melodia

ventos alísios

Edson Bueno de Camargo

1 –

algo no poema
está entre construir catedrais de ar
e descobrir a quadradura do círculo

o poeta contemporâneo
está para reinventar a busca medieval
por um moto contínuo
ou renovar a linguagem usando apenas termos arcaicos

2 –

a corrida a favor de ventos alísios
fatalmente termina em tomar chuva pelas costas
assim como os barcos que partirão junto com as monções

terça-feira, 4 de setembro de 2007

pluma

Edson Bueno de Camargo

a palavra tem o peso
que a palavra tem
pluma breve
oferece o peso de meu coração a ti

a palavra presa
contém o breviário das horas e dos dias
e a pena que não possuí o pássaro
nem ave que não,
ama

meu fígado, não meu coração, é quem ama
e seu peso não é mais que uma pluma

a pena tem o peso
que a tinta grávida de palavra tem
pássaro breve
breviário de quem ama as horas e os dias,
leve

gelo entre os dedos

Edson Bueno de Camargo


aqui enterrei meus mortos
nesta cidade de telhas claras
e a linha do céu não se define no cinza
onde o oco da terra abriga
coleções de esqueletos brancos

ali plantei uma árvore de carne
(em homenagem ao pai mais antigo que o outro)
que serviu de suporte a meus ossos parcos
e nela jaz enforcado um cão ainda em agonia
todo o sangue obliquo de crianças vingadas
e cabelos de cascatas de cometas

há um grito surdo de mortes precoces
inocências imoladas em campos de batalha
aqueles que carregam pedras de gelo entre os dedos
e uma agonia antiga e intacta entre os dentes

um barril repleto de braços amputados, mãos
e orelhas e narizes decepados a facão
ampulhetas de linfa coagulada e reduzida a pó
pedras de peixe ( fortuna escondida no porão)
retratos de lordes emoldurados com pele humana

há um urro indolente de tesouras de aço enferrujado
prata e ouro enredados em fina tapeçaria
um coro de choros incontroláveis de mães em praça pública
em cidades sitiadas
em muros de vergonha
e campos sem cultivo
que na falta de justiça se referem a vingança com graça e apreço
há um rio que corre destes olhos
água agourenta e salgada
que devora como ácido
toda a alegria e esperança

cães sem dono

Edson Bueno de Camargo

língua de salamandra
úmida e esbranquiçada
as patas delicadas sobre vidro moído
subir em paredes é uma ciência antiga
onde anjos rebeldes
revelam a minha nostalgia

presa na traquéia
a aranha
teia veloz de encantos

máquina de comer terra
de tremer de frio com a chuva
lábios vivos e roxos
lívidas passagens bíblicas despovoadas de medo
dedos definhando em solidão
de passos apressados no corredor do hospital

(eu não tinha pressa em nascer,
poderia morrer ali e naquele instante)

no dia em que não viestes
a lascívia dormiu ao relento e só
com colheres de prata à mesa
e xícaras brancas com detalhes de flores lilases

depois o dia de enternecer
chegou tarde
lírios brancos povoaram o jardim
um impulso onírico de velas enfunadas
assassínio de ventos alísios

reli o céu e suas serpentes de prateado agudo
argutos argumentos de véus em chamas
cães sem dono na rua
vadios como nós enlaçados à noite

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

toda a luz

Edson Bueno de Camargo

este poema
fragmento de estrela
mergulhando em um buraco-negro
na sua extrema agonia
da gravidade presa na palavra
da língua inflamada em gazes estelares
da gangrena da sintaxe e do léxico
de cálculos de astrônomos imprecisos

que o juntar de letras
lapidadas em pedras
é desalento e desterro
e estas dormentes nos signos obscuros
se perdem entre o significado e significando
poço que percorre os diversos mundos e as dimensões
de tão escuro que absorve toda a luz

metamórficas

Edson Bueno de Camargo

a poesia, objeto fetiche
árvore vodu nos jardins de acácias e bétulas

aves metamórficas
voam com bexigas natatórias de peixes vampiros
lampréias de dentes afiados e sede insaciável
criaturas primevas de tempos sem memória
serpentes emplumadas sob o sol venusiano
pirâmides astecas sobre o solo de outro planeta

figuras aborígines
terraços de terra do sonho e pedras do deserto
cobertos de terra vermelha
óxido de tudo o que é enferrujável
tatuagens e sinais de branco intenso
mãos espalmadas e lembranças do improvável

amuletos de sangue de irmãos amados
dentes tirânicos de ferro de irmãos armados
titãs lamentosos de suas desgraças
nós humanos os seus filhos
e todos os alijados da palavra
vítimas de incontáveis silêncios
esperando que o verbo nos redima

na pedra do primeiro sacrifício
imolam-se os mesmos dedos inexatos e infanticidas

abismo

Edson Bueno de Camargo


a morte é a pior das solidões
liberta o sentenciado e condena os vivos
nada mais natural que o horror
diante do que não podemos controlar

aqui me abandono
sou alcançado pela preguiça e desespero
deito em solo estéril
tentando voltar às origens
sufoco presságios e arbítrios
liberto o animal com meu nome e meus pecados

eu, guardião da porta dos condenados
Cérbero de três cabeças coroadas
dono de toda a desolação e avareza
não pedirei perdão em momento que seja

há lugares onde o abismo aproxima a todos
tão antigo que pode ser tocado

sábado, 18 de agosto de 2007

azul

Edson Bueno de Camargo

no fim, tudo é uma questão de pele
centímetros quadrados de sensibilidade
em busca da possibilidade de toque ou de dor

depois os pêlos
a dobrar em arrepios ao quase contato
beijar o fogo e sentir seus dentes com a língua
beber teu líquido como mel

esculpir rosas na carne de minhas costas
corações e entrelaçados celtas
tuas unhas
bisturis de queratina escarnada
escorpiões com ferrões de fogo
a correr da nuca aos calcanhares

quando acordar e for embora
não esqueça de trancar a porta
para que a rua não possa entrar neste quarto azul

eco

Edson Bueno de Camargo


a construção do eco
tijolo por tijolo de escuro
a cortina embebe o sentido
se embota em silêncios taciturnos

dois mil passos até a casa
a rua em quase solidão
pisar na manhã molhada

a madrugada urde fumaças
chaminés são quase árvores
rouba-se o tempo de uma lágrima
tempo dos que já se foram
a lama da ordem chama-se caos
lembrar é já ter esquecido
a chave preciosa enche a manhã

furacões

Edson Bueno de Camargo

resta uma réstia de luz

e as folhas se acumulam no quintal

é voraz a fome do vento

devora papéis velhos e sonhos que estão soltos

no outono de lua azul

o corredor é a desolação da tarde

do mesmo modo que campeia

a noite que está por vir

o ventre inflado

de tristeza morta e apodrecida

os galhos da árvore acenam

são fantasmas vistos pela janela

e o medo do escuro recorda a infância perdida

no beco feito de álcool e naftalina

vergões nas costas: água, vinagre e sal

dividi o pão dos esquecidos e amanheci novo e velho

perdido feito uma criança em meio a tantas guerras

cabelos brancos e falta de senso de direção

os olhos não aprenderam nada

e nada tem para ensinar a mão

ouvi então um coro de anjos tortos

entoavam um blues para New Orleans

quantos furacões a devastar nossos corações

domingo, 29 de julho de 2007

parafina


Edson Bueno de Camargo


a chama resiste
à própria extinção
parafina líquida em ebulição

o vento cruza
dois quartos de quilometro
até a janela escancarada
que virada para o poente
permite a brisa fria
envolver a vela

tudo isso precede a escuridão

gravuras japonesas


Edson Bueno de Camargo


1 _

há momentos em que até os cães dormem
e a solidão se admite sólida
tal qual a escuridão
pode ser tocada

de tempos em tempos
os espelhos nos observam
no exato instante da intimidade
onde tudo se sela com um beijo
e os umbigos se vêem como poças de almas
voltam a ser sangue da primeira hora
criam dentes de vidro e contas colares

o frio é tão breve
qual um carro contra a parede


2 _

queria ser mais
que a certeza de morte
campo de trigo coalhado de corvos
lágrima decepando orelhas
girassóis espirais
parafusando o céu

rangas indianas dilacerando metal
enquanto confesso, despeço-me
na ponte das gravuras japonesas

sombrinhas de bambu e papel
a tarde pintada de amarelo
bandeiras-arco-íris de papel seda
grous em primeira lição de vôo

esquisito


Edson Bueno de Camargo


ao primeiro sinal do dia
buscar os vestígios de luz que despontam
na sola dos pés

plantações de delírios nas soleiras da porta
limites entre a noite anterior e o dia que vislumbra
fronteira entre o sono e o sonho

em língua espanhola
esquisito significa gostoso
esquisito é chamarem cabelos de pêlos
assim não saber quais pêlos afagar
ou que lábios beijar

quinta-feira, 26 de julho de 2007

devoram-se



Edson Bueno de Camargo


gafanhotos vestem-se de folhas
e assim se tornam quase plantas
devoram-se árvores que não são

se volve sem sinônimos
palavra-gafanhoto o poeta também
como se o poema-árvore
não fosse suficiente fome

plenitude

Edson Bueno de Camargo

meio anjo
é quase humano
ou inumano em sua essência

mas
assim como o homem-mulher é quase anjo
também é a mulher-homem
meio anjo ou meio humano

ambos não se distinguem
na busca da plenitude

peregrino


Edson Bueno de Camargo


caminho sobre cabeças de
serpentes
sob o Sol que dá cor a tudo

as coisas contém histórias
e as vezes se põem a contar

peregrino do tempo
o vento cruza a tarde
de mais um verão que morre
próximo
em derradeira agonia dos dias

gravidade


Edson Bueno de Camargo


o cair inalterável
induz ao moto-perpétuo
a gravidade perene

da máquina
a roda, dente e esfera
ossos de permanecer com frio

terça-feira, 10 de julho de 2007

antífona

Edson Bueno de Camargo

teus pelos me enovelam
envolvem até minhas lágrimas
(tenho chorado à toa estes dias)

serpentário

Edson Bueno de Camargo

a língua da jovem
parte-se em dois gumes
fino aço do sangue
peçonha do ferro e do corte

a doença da criação
é o vírus da destruição
a morte tem dentes agudos
pedras vivas em alvura

aquele que vive entre serpentes:
sibila

quarta-feira, 4 de julho de 2007

balões azuis

Edson Bueno de Camargo

para Carol Severiano

balões azuis suicidas
atravessam pela contra-mão
transeuntes transtornados
- gritam
(o som não sai
como em um pesadelo)

martelos de vidro
capturam pálpebras
naquela tarde distraída e cansada

um velho alheio
salva o objeto inflável
da agonia de alhures

ponteiros do relógio da praça
fincam lanças na íris do Sol
que fatigado
dissolve em laranja

- é hora de voltar para casa
onde os medos que moram no escuro do porão
esperam

porcelanas

Edson Bueno de Camargo

o pires sustenta a xícara
se movido
moverá o universo
se universo se perderá no branco


uma formiga peregrina na parede
em um passeio marcial
carregando o infinito em suas patas

ato perigoso

Edson Bueno de Camargo

psicografar poemas
dar voz a velhos
fantasmas
é ato perigoso
qual dançar sobre
abismos

é torcer tramas de corda
para o próprio enforcamento

quinta-feira, 7 de junho de 2007

uma concha

Edson Bueno de Camargo

uma concha contém um universo
nos desenhos de sua estrutura
um infinito se soma
aos números que se repetem

puxa o fio do começo
retorna a mesma meada
une-se onde tudo termina

quantos quilômetros caminha
uma formiga, por dia?
e não percebemos caminhos traçados a frio

porque somos um grão de nada
o pó que se assenta sobre uma partícula de areia
diante das distâncias das estrelas
e nos achamos superiores às formigas

o universo nos esmaga sob os pés
enquanto caminha distraído

daruma

Edson Bueno de Camargo

I-

nunca lhe dei olhos
um: esquecimento
outro: a dúvida


II-

meu neto me fala numa língua incompreensível
as formigas carregam as pétalas
das rosas de agora a pouco

enxergo o passado pelo avesso
e o futuro como acontecido
a morte é doce como se afogar
ou ser enforcado pelos pés

os rios transbordam em pernas
lambem as coxas ao acaso
tentando alcançar o sexo


III-

os meninos carregam meu caixão
cantam alegres canções de ninar
(para alguns é visível que estão bêbedos)

de repente sou tão pequenino
um precoce sensível
em um esquife para passarinhos


IV-

os ratos correm em minha boca
os vermes passeiam em meu nariz
estatueta de cerâmica
o bule posto à mesa
para o chá da meia-noite
o infortúnio dos quase mortos

a terra come olhos como sobremesa
são doces e salgados ao mesmo tempo
e soltas suas luminescências no escuro


V-

secas vidas em corredores
resíduos de sangue
o cheiro acre de clorofórmio
formol em pequenas doses
resina de álcool e codeína


VI-

tuas unhas eram duras como a pedra
deste modo se converteu meu coração

trilhas

Edson Bueno de Camargo

1-


trilhas de luz
jornada de caracóis
o sêmen em novo colchão

nosso amor prescinde de fala
o fogo interlocutor pelos espelhos
ouro fundido ao vidro

mais medo nos dentes
costura fina e delicada
tua mão guia a minha
intercala terror servil e gozo

o homem sempre será uma mulher incompleta
lâmina de espada como assento confortável
debulhar girassóis em pleno evento
tirar sementes do Sol com as mãos
retratar corações em plena evolução
estalar de calcanhares nas pedras


2-


tomar o café da manhã numa avenida de Roma
comer o mesmo pão que o Papa
transportar aquários sobre a cabeça
e caixões sob os pés
a cauda do dragão nas pedras miúdas

falsas disposições encharcam as eras
o erro fato verdade
a língua como órgão sexual
a palavra como falo

três folhas da árvore da vida
fica faltando o avesso da mentira
ouvido mouco de assustados
o som rouco dos enforcados

meu coração pesa mais que uma pena
o céu deve ser frio e vazio
uma vez que nunca faltam pecadores


3-


teus olhos são parentes do fogo
em tua fúria

não quero ser árvore que enfrente este vento
e ter as raízes expostas à vergonha

prefiro ser o mau artesão
que costura finas palavras
à lantejoulas de plástico

quero teus lábios mais para a doçura
edulcorar o castigos de deuse(a)s

terça-feira, 5 de junho de 2007

peixe fóssil

Edson Bueno de Camargo

1

rachar o horizonte
com machados de obsidianas
o fio agudo do vidro

do risco
extrair das estrelas
diamantes


2

eis que trezentos anjos se ausentam
os dias apresentam a catástrofe
acresce-se o pó dos cometas
o eco da tormenta
às sandálias dos peregrinos

o peixe fóssil na pedra
escamas de puro cristal
contra o desaparecimento, nada

3

o homem simples esquece
o dia anterior
o jornal da manhã é outro
a mulher que fuma à sua frente também

(aranhas fiando o tempo/
areia escorre lenta e gradual/
no embolo da ampulheta)

quelônio

Edson Bueno de Camargo


quelônio ao Sol
coração de três cavos
batendo desde a aurora do mundo
tambores ancestrais
fluxo sangüíneo do tempo

fatias de abacaxi secam perto da noite mordente
quintal varrido
o som oco de tardes desmoronando
(sentado no degrau da cozinha
observa)

o cruzeiro no brilho do dia
o céu violeta encobria violências
torção de torrões
o chão úmido de lágrimas e sangue

(me engasgo no leite materno
a exatos 45 anos)
não gostava das calças curtas que minha avó costurava
aprendia solidão com a lição dos olhos

a gestação nos corredores da fábrica
peça de reposição de porcelana

segunda-feira, 28 de maio de 2007

sucumbiram

Edson Bueno de Camargo


tranquei uns gemidos em gavetas
e uns sussurros em caixas de papelão

no sótão tens objetos que ocupam (as caixas)
estas que se acumulam
e se devoram

guardar lembranças é matá-las
em sua essência
colocar o sumo da memória em estanques
Psique peregrinando entre os templos de Demeter


quartos de guardados são cemitérios de almas
não há paraíso para reminiscências
há sempre improvisos de inferno
tentação de olhar para trás

(sucumbiram Orfeu, a mulher de Lot, as vítimas da Medeia)

há sempre o risco de se tornar uma estátua de sal

sangue como tinta

Edson Bueno de Camargo


assim se usasse sangue como tinta
talvez impressionasse os olhos dos ouvintes
e em grande pompa entraria na arena
onde outros imortais esperam

mas
de que adianta ser sob a sombra do ostracismo
por que fazermos tudo isso
se isso não é aquilo que esperam?

tu esperas dar poesia aos que não tem pão
mas poesia não se come
não cobre o corpo para dormires
mal serve de alento para as dores
e o cansaço do dia

ai daquele que confia sua dor aos outros
mal aventurado o que mente
o que planta sementes em terrenos estéreis
o que busca água nos desertos
o que despreza o mar por ser grandioso
e busca alento nos regatos das montanhas

o poeta e o louco da aldeia tem o mesmo destino
de acreditar que insensatez é verdade
de ter poder de criar mundos com palavras
melhor o palhaço que faz rir
e ri de todos
guardando o choro para o escondido das cortinas

sexta-feira, 18 de maio de 2007

nunca te escrevi um soneto

Edson Bueno de Camargo


Belo tal qual o sumo dos poemas
Para elevar minha alma além do gozo
Jorge de Barros


nunca te escrevi um soneto
desta chuva de setembro, teus olhos
da primavera entrando nos poros
de maneira líquida e insone

flutuo no vácuo da morte
se te enchem luminares de lágrimas
afogo-me nestas poças salgadas
abandonar-se à maré que me trazes

nunca te escrevi um soneto
não pela falta de desejo
mas pelo fato de incompetente
estar permanente mutilado pelo verso

então te cantarei ao meu modo
em odes confusas, quebradas e incompletas
trovador, menestrel ou bobo da corte
pois és majestade em minha insolente existência

eis que te amo acima de minhas incapacidades
que na ausência de sonetos
buscarei nas tardes quentes do verão
ser uma brisa em teus cabelos

na inexistência da métrica
serei a medida de teus passos
ser a estrada em que caminhas
tornar-se suave para teu andar

na impossibilidade da rima perfeita
ser o cântico que te embala ao sono
verso inconcluso, cobertor de estrelas
Urano todo ciumento de tua amada

diadema

Edson Bueno de Camargo


teu sexo
uma flor aberta para o Sol
onde o sal flúor relampeje
e cegue os néscios que carregam
dardos cravados ás costas

teus seios órbitas perfeitas
carregam constelações estelares
no leite de teu colo

tu perfumas minha presença
que dispo a baila
a barca de sombra e cheiros sombrios
tua carne me faz carne
e a ti pertencem as duas


usa este diadema
como corola de espinhos
o sangue lavado das costas
serve como vinho
verte prata destas lágrimas
e dá aos pobres da terra


cânticos parados no vento
uma monarca migrando contra o verbo
teus cabelos roçando em meu peito
anátema dos silêncios oclusos

para uma única palavra
negava o fogo aos homens
para adornar os teus pés
e destruiria e reconstruiria o mundo
tantas vezes fosse necessário
retornaria ímpio entre os meus
com tu viveria o desterro no deserto

mas não
nem um único sibilo cingiu os teus lábios
um sorriso que fosse


então me pari homem e menino
e me tomaste no regaço de teus braços

domingo, 6 de maio de 2007

silogismo

Edson Bueno de Camargo

a nervuras das asas da borboleta são alinhadas pelas paralelas do ponteiro do relógio
todos os ponteiros de relógio são afiados conforme o ângulo do extremo dos obeliscos
portanto para cortar as nervuras da asas da borboleta são necessários pontas de obeliscos.

cruz espelho

Edson Bueno de Camargo

1

homens de areia
se dissolvem na praia
sempre ali nunca estiveram

pedras rosetas para recontar meus sonhos
de forma que os leões façam tanto sentido quanto a pedra
na cruz espelho atirada ao longe
pelo ancião que a cada dia me torno

o ácido vento que no tempo fez guarida
pintou o telhado de minha casa
com a flora de algas

tons de verde que se estendem
numa minúscula tundra
florescências e florestas minimalistas

2

este crescente que se derrama
sobre meus cabelos
e permitem a estes o branco

eqüinos se formam no substrato
de solos vermelhos

conto cavalos de areia
que irrompem
cargas de cavalaria
cavalgadas de vento sem esporas e celas

3

bailam demônios em meus ouvidos
e seus ossos brilham como ouro sob a pele

curvo-me com as vergas do teto
acendo minha pira funerária
desato de minha língua o verbo

busco em tua boca aquilo que faz meu sentido

para o abismo

Edson Bueno de Camargo

crio borboletas com os olhos
quais às vezes dependuro em janelas para o abismo

e recorto o orvalho
em jarras de alabastro

e carrego os contrários
em minhas costas

as vidas que vieram a minha casa
recebi todas
ao meio dia foram embora
minha casa ficou sem vida

eis que tudo ficou
o sentido
a casa
as borboletas
e o orvalho

quarta-feira, 25 de abril de 2007

obsidianas

Edson Bueno de Camargo

1

pulmões plenos de líquido
alvéolos em pedra ar pedra
obsidianas agudas cortantes
substituem dentes e pontas de flecha

o sonho neolítico acorda agora

2

e se quem sonhou a civilização acordar?
desaparecerão prédios e automóveis?

pássaros de sonho
presos à gaiola de teia de aranha
penas e pedras brilhantes
para brincar com espíritos

3

batráquio humano urbano

arrancar a primeira pele
tudo membros limpos
movimentos involuntários

esfolados vivos
não se distinguem batráquios de humanos

4

o umbigo é uma fonte
que jorra dia e noite
mesmo depois que o rio foi cortado
e seu corpo doce e viscoso
decepado pela barriga
não fala mais

ocarina

Edson Bueno de Camargo

meu avô materno tocava ocarina
um pedaço de barro que soa como um oboé
por mais que tentasse
nunca consegui imitá-lo
tocar ocarina foi meu primeiro de sucessivos fracassos

sempre me acreditei raiz
do que troncos e galhos
dormir sob a terra traz um certo conforto
que troncos e raízes não me perturbassem
mas os brotos insistem em nascer
espiando para fora da terra

está é a natureza de brotos e galhos
nascer continuamente e crescer
dando novos brotos e galhos
nascer continuamente e crescer
dando novos brotos e galhos

agora me vejo também broto e galho
da grande árvore que sustenta a vida

conduz-me pela mão uma avózinha
seus olhos faíscam fogueiras antigas

eu
que acreditei que a poesia me redimiria
entendi que o círculo habita no ventre do compasso
assim como o nascimento do círculo gera também o compasso
pois seria senão somente um objeto
compasso
antes do nascimento do círculo
um fetiche sem razão e sem sentidos

tomemos pois doses do grão
assim nós que seremos terra
poderemos ser bebidos um dia

quinta-feira, 19 de abril de 2007

criatura tocada

Edson Bueno de Camargo

para Mia Couto


num orifício nas mulheres
um fogo que vem desde o primórdio dos tempos

e este fogo bebe toda a água que cabe no pote
seca o regato
diminui as margens do rio
e terás que buscá-la em outras aldeias

mas
nem que me tragas toda a água
que é possível obter
não saciará a sede
do fogo das mulheres
pois possuem-na de todos os tempos

e assim cozeram homens e toda a civilização
plantaram o trigo
e cobriram nossa nudeza
sem o qual seríamos rudes caçadores

e quando um homem tenta alcançar para si
o fogo
é necessário morrer como homem
nascendo no momento seguinte
como criatura tocada

humanidade

folhas gaivotas

Edson Bueno de Camargo

estremecem as estações do ano
com o peso do óleo das penas
sob o peso do ar em seus ossos

pois papel dobradura
carrega locomotivas em suas entranhas
e pesa o vapor envolto em correntes de aço

domingo, 8 de abril de 2007

eco

Edson Bueno de Camargo

das pontas dos minaretes escorreram teus olhos
que a maré trouxe pedras pontiagudas
e rostos enfumaçados

deu-se o sílex das pontas de flecha
neolíticas extremidades da língua
de serpentes


viajar sobre a areia quente
refresca o senso do caldo
lua corrente sobre às águas
do oásis

o deserto perfura nossas línguas
com o outro adorno
que carregas em teus seios

sobeja água permanente
e pobre
cabelos lisos na testa
as luzes do fundo do ouvido

cai uma maçã no eco do Hades

de resto

Edson Bueno de Camargo


o toque da pedra
suave como a dor
mistura com sangue
a terra e o tempo

areia lisa e caótica
simulacro de mesas postas

potes quebrados
odes ao vento desta noite
e escárnios aos das anteriores

cabaças com água pela metade
de resto
teu beijo com gosto de anis

domingo, 1 de abril de 2007

margueritas às três horas da manhã

Edson Bueno de Camargo

batem à porta e não serão atendidos
os nós do carvalho soam como sinos de bronze
há um corvo morto no jardim
que deixará de assombrar meus sonhos

tulipas maduras são hélices de fogo entreabertas
como vôos de andorinhas canadenses
atravessam o continente até a porta de minha casa
nas árvores com flores amarelas em minha rua

três cavalos negros e paramentos militares
três cavaleiros alinhados portando sabres
bandeiras de guerra
em carros de ferro e rodas ruidosas

crianças bradam sua liberdade
sem perceber o incômodo que não cansam

o asfalto das vias que se continuam
paralelas em algum ponto se interromperão
o brilho da couraça do besouro
a fuligem de suas patas
conduz a precipitações metálicas da serena tristeza da noite
quando em Berlin clarinetes conduzem arrepios
o frio estridente da Alexander Platz

ferro frio

Edson Bueno de Camargo

vós que mastigais folhas de ervas
e as próprias línguas-galho
proliferam o fumo
de louro e vulcão

vicejam em teus olhos
todos os tempos mudos
pergaminhos de palavras que não formaram escritas

vestígios de caos e caldos
frutificam videira dentro
do útero
a vinha dos menestréis de olhos vazados
a lírica sem cordas das pedras ocas
passadas ao ferro frio de um lírio

sexta-feira, 9 de março de 2007

o som que há em tudo

Edson Bueno de Camargo

hoje amanheci com um peixe dentro do ouvido
e este me contava todas as histórias desde o princípio do mundo
de quando as novas coisas ainda eram velhas
vestidas do útero da terra

corri com o chacal e senti o cheiro do medo e o gosto da morte
e me pintei com o sangue do animal que abati
e chorei seu espírito e seu sacrifício

dancei sobre o fogo dos vulcões imemoriais
e respirei de novo pelas guelras o sal do primeiro mar
dormi sob o manto da primeira longa noite
na vigília do primeiro coiote sobre a terra

e a velha anciã me levou para o topo de todos os lugares
e me apontou as estrelas que caiam do céu
e de como somos filhos delas
seus dedos magros e secos se encheram com meus cabelos
e sonhei o sonho de todas as coisas
e que eu estava em todo o lugar

chorei todas as tristezas do mundo
e minhas lágrimas correram como torrentes montanha abaixo
e meus pés criaram raízes
e me tornei uma grande árvore
e fui abatido por um grande raio
e sua voz era como o som que há em tudo
e queimei até só sobrarem cinzas
para que tudo principiasse novamente
e vi minha semente nos olhos de meu neto

óleo

Edson Bueno de Camargo

qual o tipo ideal de óleo?

para azeitar peixes
e tentar apanhá-los em cascatas orientais

para que o vermelho vivo
tome pássaro de pedra basáltica
o negro céu amanhece neve

para pássaro roca
iluminando o estreito de Ormuz
quando o Argos tomou as pedras do leme

para navios açoitarem os continentes
imperfeitos intérpretes de intestinos
e voláteis luzes

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

simetria

Edson Bueno de Camargo

línea teia seda de aranha
amarras cruzados destinos
o arcaico som que transpõe o dia
lindos caracóis das ilhas Maurício

a tamponação de um cadáver
é extremamente importante
nas primeiras horas da morte
ante o esfriamento da gordura humana
que poderá ser coletada em estruturas de jasmins
ou flores de narciso como cópulas amarelas

a repetição do temo contorna
de novo a cor azul

não retorne dos meios ocos
sóis de estrias longas
que árvores vivas plantam-se
de cabeça para baixo
ter por horizonte
doze troncos de carvalho em perfeita simetria ladeados

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

abril de 1979

Edson Bueno de Camargo

respiro flores de plástico em sua fronte
enquanto mosaicos gregos da Anatólia
reclamam de Bizâncio à sua origem

recolho as gotas de orvalho
pérolas nas pontas de seus cabelos
como as agulhas de pinheiro
na manhã de abril de 1979

chovera a pouco, e em todo o terreno alagadiço
pipocavam árias de Wagner
em voz de baixo barítono

não era o incêndio natural daqueles dias
era uma coisa nova
que cheirava a betume
e chorava flores roxas

toda a interrupção é desagradável
pode nos deixar em uma pequena estação de trem
entre nada e lugar algum
em meio a densa neblina com ares de algodão doce
onde crianças devoram todo o açúcar da terra

é irresistível olhar por debaixo da porta
quando os gansos se entopem de cerveja
e cerejas explodem como flores amarelas do Danúbio

buscar abrigo

Edson Bueno de Camargo

ungir com óleo
o rebentar de pontas de costelas
a dor de nascer de dentro de si mesmo
e andar a esmo pela rua

buscar abrigo sob às árvores
e nem aves de mau agouro te puderem suportar
e com a cor de teus desejos
escrever a carta de luz lunar
e se desfazer em cinzas ao primeiro vento da manhã

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

cabelos brancos

Edson Bueno de Camargo


derramar a seiva vermelha por horas
até que as raízes se amoleçam
em tom de branco liso e limpo

vasos de cerâmica minóica
são completados com as gotas de resina
da mastigação frenética de pequenas cigarras

o verde predomina em contraposição a xantofila dos ambientes
das casas com cadeiras amarelas
alpendres com pérgulas vivas
e vidro azul celeste em móbiles pendurados
com cabelos brancos de senhoras depois dos sessenta anos de idade

figos verdes

Edson Bueno de Camargo

_

guitarras flamencas
tocam no verniz de pires brancos
servidos figos verdes e creme

folhas de menta cavalgam o colo
de insetos notívagos
entre as romãs de rubra semente
que seriam azuis em outra ocasião

romãs e figos maduros
são sexos femininos
tomados de carinhos extremos
se desmancham em gotas de deleite
ao calor tórrido dos trópicos



_

úteros são flores
que nasceram para o interior da alma feminina
cujo os homens perdem no feto

somos viragos noturnos
esperando a cópula e a morte
não antes sem a lubricidade dos orgasmos
lembranças úmidas do conforto de nossas camas

teu beijo é uma galáxia
e caminho para a extinção negra e sem saída
cada vez que amo
este teu pedaço do princípio de tudo
reforma a ordem das coisas
cria e se extingue mais um universo

sábado, 3 de fevereiro de 2007

tocar as teclas

Edson Bueno de Camargo

não me permitam tocar as teclas
deste piano
esta agourenta ave branca
e seu ramo de oliveira no bico

o sono azul das velas
queimam águas dispersas
o deus velho arranca suas barbas
diante do inevitável luto
o novo acaso ri as escâncaras

a minha outra noiva
está dentro de mim
e seu retorno será a maré
que todo deserto deseja

esvaziemos garrafas verdes
e esqueçamos a noite
em pequenas taças chinesas
quando se bebem estrelas
lambendo a borda de espelhos

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

o cal de um dia inteiro

Edson Bueno de Camargo

tomei uma lágrima
como hóstia de sangue
e me perdi na sua nova

aquela casa ainda se encontra fechada
os gritos mortos perturbam os grilos
vaga-lumes verdes
coletados na aba do chapéu

sorrisos sem carne
consumo de peixe seco
línguas ressecadas em pleno mar

a água é o sal de seus ossos
o cal de um dia inteiro
uma palavra é uma sentença
condena a palavra a ser dura

a guelra afoga oxigênio
ar peso
pedra angular da pirâmide

andar à luz do sol

Edson Bueno de Camargo

ainda a fronteira
que se rompesse a vida
lhe traria de volta
e não olharia para trás em nenhum instante

este poema
suíte de cordas ocas
o som rouco da respiração da morte


hoje ainda é tarda a noite
cacos de louça que sobraram
das esculturas assassinadas

o menino come céu por sua linha
amarra um resto de nuvem
empresta a corda a lira
caio o pano de todos os espetáculos
ruem picadeiros
ardem em fogo as lonas

não haveriam lágrimas o suficiente
para parar a chuva
e uma vez viva
recomporia a luz das sete cores
tomaria das chamas as roupas para andar à luz do sol

quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

emaranhados às fibras

Edson Bueno de Camargo

ocupe-se que os gritos dos jovens amantes
fiquem emaranhados às fibras do tecido
e purifique a mistura

ao beber lágrimas
preocupe-se em coar o sangue
em virgens lençóis
anteriores às núpcias
obtendo o sal

deste branco mais puro
destile o cristal primeiro
daquele que se encontra nos prados da primeira cidade

assim será obtido o princípio de tudo

venezianas

Edson Bueno de Camargo

orgasme-se
no calor das lâmpadas
monjas insanas
bailam suas últimas dores

faça o parto de si mesmo
e parta


cuspa no mar
a água pesada chumbo grafite
o cálice de amargo absinto
transporte esferas, estelas e estrelas

neste quarto as janelas
dão
a todos os lugares do mundo

e por instinto medo
nunca espio as venezianas