sexta-feira, 14 de novembro de 2008

sublime

Edson Bueno de Camargo


a criança carrega um Sol na mão
seu calor atinge à todos
(sua luz nos cega indolor)
há uma claridade terna
que envolve

a criança tem um colar de corações fossilizados
roubados àqueles que não sonham
dedos que estão vermelhos de luz atravessada
e não queimam
dentes que transbordam
um sorriso branco
ártico e límpido
de aurora boreal
e caminhadas de ursos brancos sobre a neve
de filhotes de foca
e língua de azul celeste

a criança tem pés suaves como raízes profundas
em busca da água mais fresca
e joelhos de nós de pinheiro
duros como pedra orgânica
e que precisam arder para brotar
cabelos de profunda noite sem fogueiras
(das que carregam medo em seu ventre)
e cheira como a brisa primeira do dia
entre os girassóis

a criança sussurra com lábios
de mel pela primeira vez
voz de pássaro solto da gaiola
de prisioneiro libertado de prisão injusta
e ainda assim silente

a criança fala seu verdadeiro nome
mas surdos ao sublime
não escutamos

extinção

Edson Bueno de Camargo


1

trilha de peixes
sobre a areia do deserto
suas manadas errantes
levantam poeira sob a lua
a sina de nunca fechar os olhos
e ter sonhos ainda acordados

costuram a noite em dias
guiam-se pelo magnetismo da terra
possuem imãs mergulhados em seu cérebro
as pedras que lhes dão equilíbrio
carregam o cálcio
o metal calcinado dos ossos

não são serpentes
e suas trilhas sinuosas entre as pedras
mas carregam no ventre escamas para o movimento
em nenhum momento param
o ir é todo o destino a que se reservam


2

as estrelas assistem ao longe nossa extinção
testemunham os nossos sofreres
brilham independentes de nossas lágrimas

à distância tudo é belo e completo
mas as pequenas coisas
é que de fato são importantes

ideogramas

Edson Bueno de Camargo


que escrever sobre a pele
é difícil exercício
conhecer os ideogramas necessários

cada traço com descuido
torna-se corte
e incisões desnecessárias
com o tempo
em traumas
uma memória na epiderme
passam a ser palavra-tatuagem

há de se compreender toda a dor esquecida
porque a dor não olvidada
será lembrança muito profunda
e nas profundidades se perderão da razão
pois a dor sem razão
é vendeta

o tato do talho mal escrito
é desagradável
provoca sensações de medo e escárnio

porque a navalha mais cortante é a da língua
aço de carbono temperado
com o ferro do sangue exato.
caco de vidro de lâmpada
retalha a carne antes da pele
talha a si mesma no ato
serpente que morde a própria cauda

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

azaléias

Edson Bueno de Camargo


hoje à tarde
as azaléias voltaram a florescer
dando ao jardim um certo ar de arte zen

não me canso de observá-las
até que o olho se transborde em lilás
recordo as palavras do velho mestre (medite)
comungo com este estar
que se dilui em verde
o universo tomou seu assento em nossa casa
neste pequeno pedaço de terra que deixamos livre e verde

esta tarde tudo me retorna ao nosso amor
da juventude que trespassa
nossos corpos velhos e cansados (e nem sempre vence)
de quanto o meu desejo ainda é novo e terno
é calor e sol
de como minha boca é solidão sem teus lábios

olha o chão
tapete ruidoso de folhas
água da chuva que impõe sua presença
a primavera que chega
há mais aves no céu
e a neblina molha os teus cabelos
sinto ciúmes de algo que consegue te envolver com tanta intensidade
fria sob o Sol
feito brisa marinha com sal e susto (e o mar tão longe)

as azáleas ainda não se acostumaram
à nova casa
não pintamos suas paredes (mas vamos)
há no entanto um piso recente sobre o cimento
e nossas orquídeas e bromélias servem de playground aos gatos
a pitangueira agora branca
reinventa uma estação

medito sobre os propósitos da existência humana
não existem
só sei que te amo mais hoje
do que quando te vi pela primeira vez
nas escadas da escola
imagem que morreu no templo dos infinitos

arremedo

Edson Bueno de Camargo


uma linha negra
cruza o papel
formam-se sombras e garatujas
como um deus infantil
criança de vidro
criando um esboço de mundo

aqui um arremedo de árvore
ali um boneco de riscos
uma figura de arame sem carnes
é a criança construtora de mundos
e seu lápis simples
que contém a possibilidade do ponto
o grafite carbono que esta em toda a vida
o papel banco por ausências

é necessário a não cor
para sentirmos à necessidade deste espectro

a colheita

Edson Bueno de Camargo


abriram-se os olhos do tempo
vergas bem colocadas da nau
o vento vai além destas paredes
e a construção do grande sonho

há pássaros demais
a pousar no fios
são muitos a nos observar

há uma multidão na porta da sala
há um pavor crescente nestes corações
os homens recordam das mães
as mulheres dos filhos que nunca tiveram
ou dos que já se foram
(não sei o que dói mais)
ou perderam os que serão

é chegado o momento
em que a colheita é mais importante
que o plantio

bordas

Edson Bueno de Camargo


as bordas das xícaras
são círculos perfeitos
espessados em branco
também o são
os contornos perfeitos
das laterais dos pires
( e assim também suas almas de porcelana)

as bolhas de espuma
esferas exatas que habitam
a superfície do café
lembram planetas perdidos
que não cumprem mais destinos selados
pedaços de ar que se desprendem do líquido
parcelas de tudo o que quer ficar

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

quero uma mulher que seja

Edson Bueno de Camargo

de qual planeta vem estas mulheres das revistas?
são todas belas e inexistentes
quero uma mulher real
que possa pegar a mão
o pé
e todo o resto que é tão bom
quero uma mulher em carne e osso
e pele
muita pele para afagar

quero ser o amante da moça sem graça
que anda na praça
em busca do sonho
quero ser o namorado da motorista do ônibus
o caso secreto da policial e seu batom discreto
da feirante
da mulher da bilheteria do trólebus
da estudante tardia
da professora

quero uma mulher com cheiro de produção
de graxa
de graça
de peixe
de sopa fervendo
de margaridas
de rosas
de criança amamentada
de lagartixas na parede da velha casa

quero uma mulher que chore meus mortos
que me xingue zangada
aos meus deslizes
e que me beije
quando lhe der na telha
em um rasgo de ternura
que tenha um olhar de mar profundo
e de estrelas caindo do céu

quero uma mulher que compre lingeries sensuais no camelô
no segredo das ruas
que vista números grandes
que exiba suas dobras sem medo
que saiba que é gostosa
sem precisar ser a mulher manequim
da propaganda de cerveja

quero uma mulher que tenha o sexo tão quente
e confortável o suficiente
para derreter todas as certezas absolutas
e deitar por terra todas as filosofias dos homens
que seja uma mulher total
que segure minha cabeça com ternura e me esprema em teus seios
que eu possa ser menino em teu colo
que me amarre a cintura com tuas pernas
que não tenha medo do claro
e que ame no escuro só por pura diversão

quero uma mulher para envelhecermos juntos
que seja mãe
irmã e confidente
mas que nunca esqueça de ser minha mulher
e que sou teu homem

que possamos das as mãos no cais
olhando para a lua
contrair núpcias toda vez que acordamos de manhã

quero uma mulher que fique comigo
todo o tempo que esta me amar
e possamos colecionar coisas tolas
que guardamos com o tempo
como o primeiro sorriso de um filho
os primeiros passos de um neto
flores secas
bilhetes de metrô
e cartas com a letra incompreensível
um chumaço de cabelo
um par de óculos imprestáveis
uma lente de aumento
um selo
conchas de praia
bolachas de cerveja do primeiro encontro
e toda uma gama de coisas inúteis
quanto estes meus versos
que pouso no papel agora

quero uma mulher que seja tu agora
e nos séculos dos séculos dos séculos

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

infinito

Edson Bueno de Camargo

pés como mobília da casa
presos ao chão metálico
de lustro e brilho imersos
vermelho de ceras antigas

na pequena varanda
degraus de experiências primeiras
todo o céu de crisântemos secos
pétala a pétala caídas ao chão
(e sempre vivas que não saem da memória)

de lírico imenso e verniz de besouros
batentes formando retângulos perfeitos
trabalho de goivas precisas
a porta se forma de todos os quadrados
todas as voltas e crivos
linguagem geométrica
de falas atemporais

há insetos que não resistem à teia
os fios finos construtores do tempo
devoradores de carne e viço

da minha altura
o mundo era imenso e infinito

nova pele

Edson Bueno de Camargo

sinto-me desconfortável
sob esta nova pele
suas texturas ainda não são minhas
não me acostumei ao novo animal

nutro sentimentos
de sangue frio
de engolir presas vivas

sangram as partidas ao vento
em partituras de uma missa sacra
partículas de música barroca
em velame oriundos
da alma de violinos

casa de serpentes aladas
em suas penas de brilho azul
descer escadas de cerâmica aguda
que destaca a pele de meus pés

a tudo suporta a dor
o horizonte suporta o céu de carmim intenso
e a leve sensação de abandono

substitui
teto de orbes escurecidas
de noites de inverno sem luz alguma
algo de olhos de réptil observando

delicadezas

Edson Bueno de Camargo

ali descobri delicadezas entre escombros
em cidade oculta por florestas
tijolos órfãos
e mato crescendo em liberdade

todos esperam o seu momento
a redenção
a linha que se cruza
no limiar dos tempos
fronteira de espelhos pontiagudos

nossos pecados vão além da voz:
é nos silêncios que a mentira é mais voraz
formigas carnívoras a correr pelas entranhas da vergonha
devorarão a carne dos glóbulos
e beberão o sumo da íris e do cristalino
se não mirar com precisão
para as suas patas e pequeníssimas nervuras

as raízes antigas são antípodas da lógica
olhos sempre denunciarão a dor
lágrimas ocultas se revelam
quando não são queridas
menos ainda esperadas
são sim salgadas como o mar e a maré
ondas que removerão da praia sargaços e esquecimentos
e devolverão madeira de naufrágios
invadirão areias mornas sob os pés
insinuarão joelhos já perdoados
queimarão sem sombra em sol que crispa
o desavisado

há uma violência que espera sob as sombras
ódio de gárgula tomado em pedra
que não se aplacará ao tilintar de óbolos

estes só servem ao pagamento do trabalho dos remos
que impedirão de mergulhar em águas torrentes e turvas

domingo, 28 de setembro de 2008

ferramentas no tempo

Edson Bueno de Camargo

agora é inverno
e isto não me traz mais que
cordas velhas quase a se arrebentar
e uns panos rotos
que mal cobrem horizontes
tudo aqui dentro
no peito

as ferramentas no tempo
e o tempo perdido entre as coisas
um princípio de ferrugem
algo semi enterrado
uma grama que cresce indolente
coisa que não tem ajuda
nem dono

de jardins a espera
de sementes a espera
como dentes de orvalho e muita mágoa a espera
de quem os vá cuidar

não fique de todo triste
pois tristeza é como dor
fica velha e não passa
mais se acostuma
se não de todo
quase em boa parte

pois somos nós
como a figueira seca
que espera melhor água
açude sangrando na primeira chuva
teima em primavera
por verdejar

os cabelos das mulheres

Edson Bueno de Camargo

olhos de auscultar escuro
nas longas sombras de outono
em comas sem sonhos
as mesmas coisas sempre
e lentas
medo “in vitro”
as memórias que a água nega

pés de andar desertos
como vento que alisa a areia
uns lábios de esconder palavras
fiando a senha dos abismos
onde elipses de estrelas nascem ao modo de flores

(o silêncio de uma mulher
é mais perigoso que o olhar da Medusa)

caminhar areias vermelhas
barro argiloso seco
craquelado em múltiplas faces


há de se esquecer para poder se lembrar
há um chão movediço sobre as cabeças
asas de pássaro nas orelhas dos livros
onde escrevi um verso infantil
com a tinta não produzida por girinos


Cartago espera sua destruição
não há como se evitar
até os cabelos das mulheres serão armas
quando tudo o que houver será desejo
e àqueles que por ele sucumbiram
salgarão as estruturas da casa
para que não rebrote de novo
mostrando suas brancas paredes
sugarão o limbo de eras e de perpétuo olvidar

tudo pela glória dos deuses

tudo em ti

Edson Bueno de Camargo

dispo-me de minha nudez
espelho em teus olhos
eis pois
mesmo a minha pele me pesa
mais que o ver

não se suporta viva
aquela que me cobre
antes mesmo do chegar dos dígitos
à sua antecipação

o princípio do ter
precipita-se em gesto
em gosto
em leve olor de brisa e suar ao sol

pois tudo em ti
se encontra tatuado em minha epiderme
e antes desta em minha carne
e antes desta em minha alma

tocar-te é como ver-te
verter-se em alísios ventos
e alisar-te ancas e vazios das costas

quinta-feira, 10 de julho de 2008

hortelã

Edson Bueno de Camargo

eu a atravessar a rua
com um pequeno frasco à mão
fumaça sobre asfalto morno após chuva intensa
vidros sujos dos prédios
e lâmpadas velhas a piscar em ruído

eu chaves e uma bala de hortelã no bolso
bilhetes de metrô
e duas moedas de cinco centavos

eu sentado em um sofá velho
vermelho encardido
jornais deslindados
fumando mentolados de contrabando e ervas finas
um livro de poemas todo anotado

eu uma cinza apagada caindo dos dedos amarelos
unhas desleixadas e saudosas de aço

eu depois
ruminando poesia com café preto à tarde
duas colheres de açúcar e muito pouco leite
tudo prestes à acontecer

eu uma dose de uísque com água de torneira
em que meu olhar se perdeu em tom âmbar e triste
sob um par de óculos de leitura

eu uma navalha manchada de sangue
louça de banheiro: branca, fria e triste
uma revoada de pombos à chegada da noite

eu cilindros de oxigênio azul e concentrado
hospital com fachada manchada e chuva e tempo
a esperar que a asma não volte
e respire em sono tranqüilo

eu duas doses de gim antes do jantar
uma mesa coberta com uma toalha floral
uma tulipa a perder pétalas
em um jarro com a água amarela

eu esperando a tua mão
cais que aguarda e mantém
segurar e esperar a noite
até bem tarde

pétalas quíntuplas

Edson Bueno de Camargo


didática de gafanhotos em marcha de devastação
cantares apaixonados por múltiplas fêmeas
lúbrica fertilidade
libido da destruição contínua
o esgotamento
a escassez
devorar e procriar até a total devastação
até que nada reste a não ser morrer

desejos prisioneiros de gotículas da chuva
pequenos universos roubados da suspensão do gelo
o amor atando tudo com fogo
e saliva
sangue
sêmen
o retorno à terra de nossos corpos


olhos de água corrente
carregam perigo
correntes de fluxo contínuo
a quebrar em pétalas quíntuplas
em brancos e amarelos quádruplos
semiótica de nuvens brancas e azul intenso
( aos poucos entendo mais e mais Elliot)

sábado, 28 de junho de 2008

estigmas

Edson Bueno de Camargo

uma ave de cor negra pari o céu
reflete nos olhos a asa escura
como a noite que habita no oco do espaço
as penas de aço impuro

dos corpos de homens manufaturados em sangue
do fogo que vem desde à escuridão do caos
dos lumes espectrais da criação
de como estrelas negras devoram a luz
do horror que preenche o nada
dos brincos de cigarra vivas em banho de ouro
da língua inflamada dos homens convertidos em abutres

incendeia seus corpos em frágeis estigmas
a fome do corpo enturva a fome da mente
as feridas que se abrem em flores cítricas
milagres santificadas e delírios
em brancas imaculadas em crescentes fractais
de uma matemática orgânica e antecessora
de círculos que se explodem para dentro do âmago

carvão mineral

Edson Bueno de Camargo

usina de crivos na carne
onde cravos vermelhos enflorescem
os fragmentos de respiro da terra
a fusão entre o fogo e o cisma

o claro espaço entre átomos
estes distantes quando estrelas
e nossas retinas a capturar esta luz tão velha
o discreto sussurro da matéria
fundida a frio e no escuro

reine o homem sobre a sua cabeça
e a mulher sobre a cabeça do homem
e um colado à planta do pé do outro
as coroas de espinhos e farpas
as palavras em fogo e água

há um vento incrustado às entranhas
um pedaço de carvão mineral e purificador
que derrame letras sobre o papel em branco
o abismo derradeiro e verídico
o espelho de almas pelo olho do outro
sem nunca saber se fitar

terça-feira, 17 de junho de 2008

hecatombes

Edson Bueno de Camargo


como podes dizer de mergulhar no vazio
quando o abismo fala mais doce hoje
e as pétalas de ontem nos convidam à escuridão
jazem no chão de outono
em silêncio pós hecatombes nucleares

possibilidades de língua de dragão
e dentes de outro elemento plúmbeo
quando o argonauta planta guerreiros armados
e ciclones na boca aberta

todo homem quer ser amado
embalado novamente em colo quente
absorver-se em um seio imenso e reconfortante
de branco papel e pergaminho
que envolve a dor de ser para sempre sozinho
no íntimo da alma desolada
quando lhe cortam o cordão e funciona a corda
triste ironia de fibras musculares e jorro de sangue

somos todos narcisos condenados
a observar nossos umbigos
cicatrizados na separação de nossa vontade
de resumir paraísos de conforto
(e nem sempre a todos de amabilidade)
quando mergulhados em água morna
e delicada penumbra
a espera de um mundo
que depois deserdados e desterrados
nunca de fato nos apropriamos

engano

Edson Bueno de Camargo

desova de libélulas
que se dá em aço esmaltado
pelo encanto que o brilho produz
emulando o calmo de um lago

cria chocada ao Sol escaldante
de onde nada nascerá vivo
gerações não se produzirão
de todos os que estão condenados à morte pelo engano

velocino

Edson Bueno de Camargo

tudo o que queria é ser uma parte (de ti que fosse)
enquanto tudo o que acontecia
eram brumas
águas dançantes
espetáculos pirotécnicos
e paradas circenses infindáveis
(aquele Parque em Paris era mais do que podia me legar;
da grama, passeios e promenades de infinito desejo)

as crianças bizarras sem membros adequados
(carregando o castigo de seus pais)
pés e pernas fora de lugar
usando asas de gato por abanos
deslizando sobre lagartas vivas e roncos de máquinas fumarentas

silvos de serpente nas copas das árvores
(que floresciam arames e flores de prata viva)
infantes e pássaros com penas de mesma cor
que alisavam o tempo todo
mostrando grande garbo
portando colares com dentes de crocodilo e roedores selvagens

a trompa do poente em arco-íris bifocal
confundindo matizes em prisma impreciso
cor de rosa e ciano misturados
utensílio inútil à esta altura da tarde
insetos de bronze tinindo signos
e flores retortas destilando o néctar que faltara aos deuses

fiei-me em teus cílios
quando me fiz pequeno (e ainda me faço)
grão que carrega a potestade
e toda sabedoria helenística clássica

pois todos os teus pelos preciso
do ouro de cada penugem invisível
de todos os arrepios que produzirem
para velocino que me abrigue

terça-feira, 13 de maio de 2008

a mesa

Edson Bueno de Camargo

a mesa para Platão
teria de ser real e tangível
quatro pernas postas no chão
um tampo de sólida madeira
que não viessem com simulacros
poema, pintura ou representação
que todos seriam banidos da “Republica”

Platão odiava os poetas que
queriam atribuir à palavra mesa
outros mecanismos
e mais propriedades de atribuição
que por falta de senso carregassem com mais sentido o léxico

os poetas por seu turno
enlouqueceram as propriedades do vocábulo mesa
dando-lhe características inadequadas à palavra
portanto afastando o objeto mesa
de sua função primordial de suportar o peso da verdade

os poetas foram salvos por Aristóteles
que em sua Poética
resgatou-os do limbo em que Platão os condenara
permitindo que se sentassem finalmente à mesa
e participassem do “Banquete”

( onde dado a ser um fausto grego
que comiam deitados em divãs
servidos por escravos
que são coisa mas pensam
provavelmente não haviam mesas nem cadeiras)

a balança

Edson Bueno de Camargo


a balança onde se mede minha cabeça
pende ora para um lado, ora para outro
tem por fiel um fio de teu cabelo
carvões em brasa servem de peso
porque quando incandescentes
buscam para si a cor do ouro

há uma brasa viva
em teu olho esquerdo
e água abundante em tua face
língua que corta
como espada da justiça de Salomão

teus cabelos chicotes de aço
retalham a pele de papiro úmido
devoro feridas abertas
com a avidez de noviço
e as regurgito em cicatrizes orgulhosas

sonho com balanças que pesam peixe na praça
com escamas que emulam o cristal mais liso
e olhos vítreos e fixos em profundo segredo
costuro pedras de peixe e círios apagados

é para a morte que o mar me convida
vagas trazem o grito do pesadelo
estouram com estrondo em meio a escuridão
vasto cemitério molhado
ondas com nomes de túmulos
sepultura que sonega os ossos dos condenados

teu olho direito me consola e perdoa
tem ali um fogo lento e caridoso
oferece teu seio direito para descanso de cabeça
ali confortável espero a sentença

sábado, 3 de maio de 2008

betume

Edson Bueno de Camargo

tua voz de farpas agudas
e morte suave
conduz meus olhos
à fusão de betume e incêndios

o vestido de eras incertas
e insetos coletados no tempo
é o âmbar de lágrimas da pedra
caminhos cruzados em trilhos de ferro
e a água que cai lenta nas madrugadas

cabelos brancos e gotículas de leite
cabelos molhados e quentes
a íris e fragmentos microscópios de quartzo

lábio que lava o mel e o fel
o amargor da dor e do silêncio
as línguas lambidas de fogo
e outros lábios
o vermelho aparente da excitação e combustão

cães correm nas ruas
e corvos posam nas telhas mais altas
olhos de glóbulos de cristal de ler o futuro
vidro, água e espuma

os podres vãos da ponte
ameaçam a desabar
a cidade não suporta a sua velha idade
se expulsa de si

anjos renegados também abençoam

constelações

Edson Bueno de Camargo

onde dragões bebem água
podem descansar suas escamas
construir escadas de jade para lugar algum
observam abelhas
pousadas em flores de dente-de-leão

professores profetas maltrapilhos
professam a fé nos sons infinitesimais
o cântico quântico de super-novas morrendo

lembra
quando grãos de poeira suspensos à luz do Sol
filtrados em frestas e orifícios
criando fachos de luz
simulavam constelações em suspensão

quarta-feira, 30 de abril de 2008

a casa

Edson Bueno de Camargo


o homem carrega a casa sobre a cabeça
forra esta habitação com galhos de salgueiro
onde as folhas choram o sofrimento dos dias
das rosas que florescem do choro de santas martirizadas
e os espinhos nos pés dos homens que fazem a passagem
todos os caminhos são os corredores de dentro da casa
os umbrais são pórticos para visões do infinito
espelhos de Narciso a vingar o inconveniente destino

a cabaça com água está ao pé da porta
foi colhida na grande talha
para matar a sede destes visitantes que chegam
à porta
com suas ripas sólidas e travessões assimétricos
a soleira se verga ao estreito dos anos
que passam como paisagem da pequena janela da porta dos fundos
carregam todos os passos sobre a terra
trazem as acomodações da terra e suas partículas
as partituras que descrevem o ronco surdo das placas tectônicas
a energia telúrica que move pássaros para o sul e homens para o norte
os lunares e as marés dentro da alma mar salgado
o banho cósmico que se dá a todo momento
a luz de estrelas invisíveis e explosões de novas luminosas

o homem traz o caixão para seu próprio enterro
a grande obra de carpintaria e esmero
jaz na sala a espera do dia certo
os pregos na madeira carregam a memória do fogo
o cal e o carvão que queimaram para seu nascimento
nunca entram dentro da casa
os portais e portões estão sempre fechados aos viventes
os vidros das janelas só deixam entrar a luz depois de estilhaçada
os fiapos de fótons irreconhecíveis se reconstituem em frágil tecido

a casa flutua sobre os escombros que ela será
a lembrança são sulcos na terra d’onde foi arrancada
o homem já foi um menino sonhador
os meninos costuram o céu com seus dedos
cavalgam sonhos em forma de algodão
cravam dragões na espinha da água que sobe ao céu

a casa viaja ao mundo do incerto
é, foi e sempre será
os degraus vermelhos onde todos tem a primeira queda

uma cigarra

Edson Bueno de Camargo

uma cigarra
afina sua viola de jade
que em sua cor esmeralda
soa como botões de jasmim
em cinco pétalas brancas
com a alma amarela
outras flores e ramos de bétula

o som tem gosto de açúcar
sentido pela primeira vez
tomado em garrafas de néctar
e colherinhas de alpaca

a harmonia refrata tons verde metálicos
roubados das roupas de besouros
ao sol depois da chuva
emprestam sem saber as couraças
a voz ao instrumento
quando começa o cair da tarde

um grilo toca seu violino de cobre
que tomou ao enternecer à tarde
em uma febre de temer que noite caia
e nunca volte o dia

sapos acompanham com sua orquestra
de tímpanos, trompas e fagotes
concertando desde o lago

a cigarra em uníssono
o besouro e seus cornos de ouro e zinco
(cornucópia perdida aos seres)
o grilo e seu ofício
os sapos ferreiros a frio
(para o medo das fadas)

o azul se desmonta em bronze
o acaso do dia em naufrágio
as nuvens de algodão doce
os jasmins dormem á noite
quando não escutamos sua cor

o lago responde ao universo
contando suas próprias estrelas
mimo que se dá de presente todas as noites
pingos de luz no liso da água
e uma lua para poetas embriagados

sexta-feira, 11 de abril de 2008

cabalísticos

Edson Bueno de Camargo

mulheres que cheiram a incenso
não carregam cântaros de água
nos cabelos
não esperam os Ulisses que retornam
não tecem tapeçarias de Penélope
urdem crisálidas entre os dentes
como se sorrissem borboletas laranjas
dormem sob o céu de Mercúrio
e quando chove
dançam com serpentes cingidas à cintura


mulheres com orelhas pequenas
costuram a audição
em bordas de jarros de estanho
carregam nos pulsos sinais cabalísticos
estigmas de deuses ainda não nascidos
não enrolam o céu de estrelas
e não uivam para a lua


mulheres de pés azuis
não contam os dias
e não contam as horas
passam o tempo em buracos de minhoca
ao abrigo de buracos negros
não lavam os cabelos às sextas-feiras
não jogam amarelinha
que contêm inferno
coletam insetos miúdos em caixas de fósforos
e conhecem o outro lado da lua


mulheres da beira do mar
suturam redes com a seda retirada do baço
escamam peixes e os retalham
sem um reclamar sequer
não choram em enterros
e se vestem de azul por ocasião de luto
seus filhos respiram como se possuíssem guelras
e pés com nadadeiras
têm medo de altura,
mas não temem a água
costuram para seus homens fatos brancos
e se enfeitam com flores da mata
e quando a lua cheia cai em segundas-feiras
desprendem um suave cheiro de maresia


mulheres com olhos negros
conhecem a profundidade dos poços
se refletem em poças de água da chuva
sabem que o fogo vive
na alma negra do carvão
coletam libélulas para seu deleite
e as soltam vivas
rindo de suas revoadas
não costumam dizer mentiras
não falam muito à noite
nas luas novas buscam refúgio
na escuridão
quando amam
é normal se ouvirem trovões
à distância

gaze e linho

Edson Bueno de Camargo

e tu
que pisas distraída em estrelas
(como se fala na velha canção)
o fósforo de teu sorriso
ilumina esta noite
em que aguardo ansioso
o retorno da lua em meu sol
(ou em teu, não sei)

tu que traz no ventre o cheiro e o som da relva
( e ali me deito esplendido)
tens a voz de água corrente
chuva caindo
e ave migrando para o norte

é trágico amar desta forma
não se opor ao vento e à chuva
caminhar como se o abismo não existisse

na mão fechada carregas um segredo de menina
um pedaço de luz colhido agora
envolvido em gaze e linho

conto cataclismos em teu novo olho
aquele que te dei
para enxergar horizontes
aquele que ainda não foi revelado

esta noite entôo as cantigas suicidas
e dou de comer a uma ternura
com pão molhado em orvalho
para que esta me segrede
ao ouvido
o terrível destino dos peregrinos

suficiente

Edson Bueno de Camargo

estou te reescrevendo esta noite
de novo
de novo ainda
e mais uma vez como tem acontecido

de tal modo
que tudo que já tenho escrito
não seja o suficiente

pois o que me afaga
em versos transcritos e invisíveis
tem teu cheiro e cor
tem teu jeito ancestral de mulheres feiticeiras
dançarinas da lua
em encruzilhadas em tê

sábado, 5 de abril de 2008

amiúde

Edson Bueno de Camargo

uma lâmina de machado
fita longo o tempo, uma esmeralda
líquida
que cobre a areia
de cinzas vulcânicas
gozo de deusa

(calor de vulcões
que recusa o tabernáculo,
onde não entram fêmeas)

há um grito neolítico encravado na espinha dorsal
cortam pelos e madeiras cruas
crânios tomados ao inimigo

a orelha estabelece dois pontos
de fuga
em sangue encardido

comem as nuvens vermes ancestrais
criaturas que primeiro sonharam e se sentiram
que produzem duas luas plenas e férteis
derramadas
de amargo medo e coisas pequenas

amiúde o tempo fermentou das dádivas
dos novos deuses

(mas, não se calaram os mais velhos)

cabem em folhas de carvalho
marrom claras quase terra
uma dança ocre
recobre faces novas
e copas de chifres

bebamos

origamis

Edson Bueno de Camargo


última versão:

tuas palavras são
origamis delicados

que cuidadoso
desdobro
dobradura por dobradura do ouvido

e como ourives sem precisão
que sou
tento decifrá-las

quinta-feira, 27 de março de 2008

centro geodésico

Edson Bueno de Camargo

há um bezerro alucinado
correndo com suas coxas de cobre
e cascos de pederneira
ateando fogo no mundo
e apagado em seguida
por anjos de asas bem aparadas

sua língua lambe luas
estrelas que não germinaram
e trípticos holandeses ainda cheirando a tinta

( a erva é tão fresca nos prados representados)

um escuro azul
preso no centro de minha mão
que escorre com o limo das eras
da devastação
que vive presa entre as dimensões paralelas
algo entre o centro geodésico da circunferência da íris
e o último átomo da ponta de uma agulha

aço

Edson Bueno de Camargo

borboletas com asas
de aço
buscam ventos ascendentes
em seu primeiro vôo solo


tomam a recuperar do cristal a crisálida
pousadas em crisântemos
vermelho-cálidos

coleante

Edson Bueno de Camargo

tu que tens nenúfares
pintados com os olhos
aquarela viscosa de humores líquidos
vitral de nervos e luminescências
e lentes de caçar sóis enegrecidos

tu que navegas o ventre liso e coleante
dança de víboras assassinas
arrepios ao leve toque

tu que presencias
rapto de estrelas
e estelas das estradas

cuide que as escamas
estejam bem guardadas
que o dia que predizes nas dobras das vestes das sacerdotisas
acontece logo

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

sombras

Edson Bueno de Camargo

aqui somos os que fazem
sombras
e das sombras

dos que buscam cura
mas não a acreditam

dos que deram duas voltas
em torno da casa
pensando a sagrada caaba

que penduram arames
nos galhos das mangueiras

perfuram os olhos do tempo
e buscam no horizonte
respostas

em paredes

Edson Bueno de Camargo

roubarei-te sombras
em paredes
quando caminho sobre
pés de asas de borboleta

pois olhos espinho
observam roseiras
e choram pétalas
sem cor

o temor líquido
que acolhe mágoas de dragões
e porcelanas na cristaleira manchada de anos

inquilinos do outro tempo
bocas ensandecidas
rosas de pura carne
que mastigam
duros diamantes calcinados

teluricomancias

Edson Bueno de Camargo

ela é agora uma das mulheres da casa
ou mulher-casa
- assim se podemos dizer

esta combinação alquímica
de útero e terra
umidade e calor
entranhas de pedra candente
turmalinas mastigadas
teluricomancias
que aos poucos torna estas mulheres
antes novas
em luas cheias

(toda mulher é um vulcão domesticado
a guardar terremotos em seus zelos
e perigosos orgasmos)

são para a casa
outras e as mesmas
suas águas e suas telhas
o chão que se pisa e o céu sobre as cabeças
estas
que puxam cordões pelo umbigo
de onde tiram as fibras
ao qual se atam as meninas e depois os meninos
para que não vão embora
(e vão)
(rompendo em choro à suas partidas)

há das quais nos lembram como de janelas
e móveis
os gonzos das portas
retratos nas paredes
genealogias femininas
benzeduras
urdiduras e tessituras
os santos de toda a espécie (europeus e africanos, mais os que já estão com a terra)
fazem pelas suas bocas:
voz

(e estas também os homens tanto temem quanto amam)

ainda falta algo

Edson Bueno de Camargo

ainda falta algo
choro de pedra
basalto ou arenito do deserto

quer das alturas que alcançam
o canto dos pássaros
e agora mudo

quer o acorde dissoluto
de derrubada de árvores (dos Édens)
quando jaziam sob os olhos do pecado

moças nuas a banhar-se em
águas piedosas
(e luz da lua)

já não tinha aquela inocência
nos olhos
mediam-se as vertigens pela
ingenuidade da chuva

“estamos todos condenados a ser livres”
dizia Sartre
antes mesmo de se tornar um ícone
e ser tão inútil quanto um de nós

banho-me

Edson Bueno de Camargo

banho-me em águas cruéis
enquanto observas
em cálido objeto desejo
de ser tragédia e chama

conduzo a chuva
entre medos
em puro verde e rosas pálidas

dentes-de-leão
cresceram em tua porta
porque plantas silêncios às escondidas

ri de minha tolice
a dama que desvenda os meninos
destes que choram no escuro
e se afundam nos seios das mulheres
tristes e libidinosos a buscar alento em tanta fartura
como se isso
lhes desse as respostas esperadas

devo beber deste leite
buscar regaço
na floresta úmida e trágica
ou
em nuvens de pó
deste deserto agora

os cheiros da casa

Edson Bueno de Camargo

tomei de teu olhar
o reflexo do espelho
poço de muitas profundidades

outras pedras miúdas
contidas em nuvem
na altura exata

criar uma lenta penumbra
em tardes de devaneio

entre perfumes de hortelãs e
anis que fica azul em contato com a água

teimam os cheiros da casa
se misturam aos claros de luz das frestas da telhas