domingo, 29 de julho de 2007

parafina


Edson Bueno de Camargo


a chama resiste
à própria extinção
parafina líquida em ebulição

o vento cruza
dois quartos de quilometro
até a janela escancarada
que virada para o poente
permite a brisa fria
envolver a vela

tudo isso precede a escuridão

gravuras japonesas


Edson Bueno de Camargo


1 _

há momentos em que até os cães dormem
e a solidão se admite sólida
tal qual a escuridão
pode ser tocada

de tempos em tempos
os espelhos nos observam
no exato instante da intimidade
onde tudo se sela com um beijo
e os umbigos se vêem como poças de almas
voltam a ser sangue da primeira hora
criam dentes de vidro e contas colares

o frio é tão breve
qual um carro contra a parede


2 _

queria ser mais
que a certeza de morte
campo de trigo coalhado de corvos
lágrima decepando orelhas
girassóis espirais
parafusando o céu

rangas indianas dilacerando metal
enquanto confesso, despeço-me
na ponte das gravuras japonesas

sombrinhas de bambu e papel
a tarde pintada de amarelo
bandeiras-arco-íris de papel seda
grous em primeira lição de vôo

esquisito


Edson Bueno de Camargo


ao primeiro sinal do dia
buscar os vestígios de luz que despontam
na sola dos pés

plantações de delírios nas soleiras da porta
limites entre a noite anterior e o dia que vislumbra
fronteira entre o sono e o sonho

em língua espanhola
esquisito significa gostoso
esquisito é chamarem cabelos de pêlos
assim não saber quais pêlos afagar
ou que lábios beijar

quinta-feira, 26 de julho de 2007

devoram-se



Edson Bueno de Camargo


gafanhotos vestem-se de folhas
e assim se tornam quase plantas
devoram-se árvores que não são

se volve sem sinônimos
palavra-gafanhoto o poeta também
como se o poema-árvore
não fosse suficiente fome

plenitude

Edson Bueno de Camargo

meio anjo
é quase humano
ou inumano em sua essência

mas
assim como o homem-mulher é quase anjo
também é a mulher-homem
meio anjo ou meio humano

ambos não se distinguem
na busca da plenitude

peregrino


Edson Bueno de Camargo


caminho sobre cabeças de
serpentes
sob o Sol que dá cor a tudo

as coisas contém histórias
e as vezes se põem a contar

peregrino do tempo
o vento cruza a tarde
de mais um verão que morre
próximo
em derradeira agonia dos dias

gravidade


Edson Bueno de Camargo


o cair inalterável
induz ao moto-perpétuo
a gravidade perene

da máquina
a roda, dente e esfera
ossos de permanecer com frio

terça-feira, 10 de julho de 2007

antífona

Edson Bueno de Camargo

teus pelos me enovelam
envolvem até minhas lágrimas
(tenho chorado à toa estes dias)

serpentário

Edson Bueno de Camargo

a língua da jovem
parte-se em dois gumes
fino aço do sangue
peçonha do ferro e do corte

a doença da criação
é o vírus da destruição
a morte tem dentes agudos
pedras vivas em alvura

aquele que vive entre serpentes:
sibila

quarta-feira, 4 de julho de 2007

balões azuis

Edson Bueno de Camargo

para Carol Severiano

balões azuis suicidas
atravessam pela contra-mão
transeuntes transtornados
- gritam
(o som não sai
como em um pesadelo)

martelos de vidro
capturam pálpebras
naquela tarde distraída e cansada

um velho alheio
salva o objeto inflável
da agonia de alhures

ponteiros do relógio da praça
fincam lanças na íris do Sol
que fatigado
dissolve em laranja

- é hora de voltar para casa
onde os medos que moram no escuro do porão
esperam

porcelanas

Edson Bueno de Camargo

o pires sustenta a xícara
se movido
moverá o universo
se universo se perderá no branco


uma formiga peregrina na parede
em um passeio marcial
carregando o infinito em suas patas

ato perigoso

Edson Bueno de Camargo

psicografar poemas
dar voz a velhos
fantasmas
é ato perigoso
qual dançar sobre
abismos

é torcer tramas de corda
para o próprio enforcamento