quarta-feira, 26 de setembro de 2012

ouro para o nascer do sol






de Edson Bueno de Camargo



postas á terra
três moedas de prata
com faces de deuses
há muito esquecidos

para lembrar a natureza
trina
do sagrado
e o caminho que deve ser trilhado

sete moedas de bronze ou de cobre
como paga
para entrar no campo dos mortos
em livre passagem

porque aquilo que é levado
para ali
ali deve permanecer

mas as vezes é necessário
conversar com os mortos
aplacar sua ira
e o medo deles
para com o destino dos vivos
(muitos ainda se lembram vivos)

um cântaro repleto de água
para que toda a sede seja saciada
e o destino das aves seja adequadamente
traçado no céu

e semente abundante
para a fome de todos aplacar

também é necessário terra fresca
para a raiz das árvores
e os pés cansados
e todas as trilhas e pedras
da jornada

porque é preciso breu
para pintar a noite
ouro para o nascer do sol
e algodão para tecer as nuvens

:.
só assim poderás
descansar sob o véu do céu



mordidas por narcisos






de Edson Bueno de Camargo

mulheres com dores
vestidas com plumas
de mães serpentes
mordidas por narcisos
recém abertos

miram-se como flores
com asas coloridas
alpaca subindo a montanha
o sol fendendo o céu

há as que carregam bandeiras
de carmim esfarrapadas
as que vomitam soldados
as que arrancam os cabelos pelas suas mortes

e outras
que arrastam o ventre ao chão
coroas de espinhos ornadas de louro
e conduzem suas casas às costas
e fogo ameno e folhas de zimbro

arrastam correntes de cães
e pesos para balança de peixe
nas pontas dos dedos
arcadas de madrepérola nos ouvidos
e pequenas conchas nas orelhas

mulheres com dedos de terra
e arado de madeira
e faca de ferro ao cinto
transportam bálsamo e água
e muitas outras coisas que portam
acentos agudos na letra”A”

servem chá de ervas aromáticas
em potes de terracota
e dançam como o vento em torno do fogo
e rodopiam até as alturas

há de serem acompanhadas pelas anciãs
há de trazerem para a aldeia
o espírito dos ancestrais
há de rebentar pela sua luz
os novos entes
os que caminham
desde tempos idos
o porvir

primeira mãe





de Edson Bueno de Camargo


toda mulher descende
da grande e primeira mãe
a mãe de terra e raízes úmidas
como fornalhas a gerar nos ventres criaturas viventes
do primeiro ao último ser que respira

traz em seu lago de sangue
o laço do cordão umbilical
e segura nossas mãos onisciente

beija nossos dedos
tal qual quando  nascemos
e carrega-nos doce e leve ao seu arrego
apaga de nossa memória os pesadelos
e o passado
destrói e ponte
e torna a estrada terreno selvagem

e sem retorno
voltamos a ser fetos
presos aos afetos de quem nunca quis nos abandonar
voltamos a ser só ventres nas raízes de abetos
da floresta onde tudo começou

toda mulher descende
da primeira e grande mãe
e nos abriga entre suas pernas com fogo
para não mais retornarmos ao mundo
é como morrermos
e só muito depois
acordarmos 

educar os ouvidos





de Edson Bueno de Camargo



"para uma Mariana Zenaro indignada"


há de se educar os ouvidos para o belo
para que não se olvide de si mesmo
o humano
pois as pedras
que se assentam a catedral
devem ter fé
para que para sempre
sejam lembrados
os laços e os braços
que se tornaram anjos

há de se quebrar os paradigmas
para que o belo
possa morar em nossos ouvidos
pois só aquele capaz de chorar
diante de sua obra
poderá rezar pela sua mão

pois são as pedras
de uma catedral que rui
que formam o som mais puro
há de se derrubar os olhos
para que som penetre
tal qual harpa
na carne
e as harpias graves do azul
hão de se retornar
ao princípio do humano

aí haverá de ouvir os anjos
onde se assentam os demônios