segunda-feira, 8 de novembro de 2010

vermelha



Edson Bueno de Camargo

a tarde cai
abrupta
e vermelha

nos subterrâneos
e nos subúrbios
em seus muros
necromantes desajeitados
geram um mundo deformado

origem divina

Remedios Varo - 
Embroidering the Earth's Mantle -1961 - Oil on Masonite



Edson Bueno de Camargo

as letras de todo nome
carregam no escuro
os signos de animais celestes

cada palavra
tem origem divina
e cada letra
ainda lembra que um dia
foi um vocábulo inteiro

e
esta
quando grafada
cria em magia um mundo

manancial



Edson Bueno de Camargo

hoje
a poesia me abandonou
no deserto
na beira de uma cisterna seca
com pedras em suspensão

de cada seixo rolado
abandonado ao fundo
palavras e letras se espelham

o deserto é branco
celulose selvagem
tecido fibra por fibra

a água espera em algum manancial
a língua (seca) escassa
tem pressa

as pedras enchem minha boca
em algum alívio mineral
assim como as serpentes
que fogem do sol escaldante

o deserto é um mar que morreu um dia
o sal que ficou
agora dói em meus olhos

rosas heráldicas





Edson Bueno de Camargo

teus olhos
devastam-me a pele
como rosas heráldicas entrelaçadas
e facas feitas de espelho

cobrem minha íris de estrelas
e cacos de vidro fúnebre
cortam minha carne
em delicadeza

teus dedos
são meus dedos
e cada ponta
um dígito em fogo
sua púbis
seus pelos
marca de identidade

cada tempo
traz a hora que cobre
as colheitas do trigo
as primeiras uvas
as construções antigas

todos os reis são para sempre
e mergulham um dia
no esquecimento

a velhice
é mergulhar em olvido
cada dia
distante de nós mesmos

ar seco do deserto

Remedios Varo, Celestial Pablum, 1958. Oil on masonite.

Edson Bueno de Camargo



este redondo sol lua
que mergulha lento
no concreto
dos limites de meu olho
veste-se de lágrimas cinzas
e sangue seco

céu de contrafortes
grande muralha
que afasta
os vivos dos mortos

sonho com arroz
que se derrama
e uma grande mesa com carne e vinho
servidos

os touros galopam
de assalto
cascos em chamas
asfalto que afoga a noite
o carisma dos esquecidos

forro meus olhos
do medo líquido
minha mão branca
coleção
de almas penadas

e o nariz em sangue
no ar seco do deserto
que estão estes dias

silêncios

 
 
 
Edson Bueno de Camargo

há um abismo de palavras
entre eu e meu pai
assim como havia entre ele e o seu falecido pai
e o pai de meu pai e o seu pai
até que se chegue
ao primeiro macho reprodutor de minha linhagem
como se as línguas se congelassem
no instante da palavra
em que os homens são rivais
em sua progenitura


no entanto
como a poesia se faz de silêncios
e ausências

o calar de meu pai
também me ensinou sobre a poesia

ambíguo




Edson Bueno de Camargo

um pássaro com umbigo
seria ambíguo
sua placenta
se exila de sua mãe
no nascedouro
antes mesmo do nascimento
na postura

o pássaro se desambigua
antes do ente humano
em uma exercício de desapego
muito além
de qualquer capacidade afetiva
pois o ovo
é o exílio necessário
para o vôo

isto mais tarde
lhe dará a possibilidade
de se desvincula do chão
quando do desapego
de se estar sobre a terra
vencerá a gravidade
ou a enganará segundo as medidas quânticas

há grandes vantagens aos mamíferos bípedes
crescer dentro da progenitora
mas crescer desgarrados ao contrário
nunca querem vir a luz de fato
primeiro o paraíso depois a vida
terão da altura vertigem
nunca serão capazes de voar
(ao menos alguns de nós)

répteis

Foto a partir do satélite Ikonos -Space Imaging do Brasil / Geoeye



Edson Bueno de Camargo


vomito cobras vivas
cinco ao todo
répteis que caem ao chão
e fogem assustados
ainda úmidos
sulcam a terra
desaparecem na poeira

pajés do planalto central
visitam meu devaneio
saltam de dentro
de nuvens de fumaça branca
cheiram a querosene e tabaco
pólvora queimada e pinga
moeda cachaça para todos os santos
para juremas
para os caboclos errantes
para os egúns vivos quase mortos
que caminham pela civilização
e têm nos olhos telas brilhantes e antenas

não se sabe
se é noite ou dia
céu vermelho sobre a cabeça
tempestade de areia do Saara
dormindo nas águas quentes do Caribe

câmeras assustadas filmam o abismo
desvelam línguas e palavras
uma menina pivete desafia a polícia
com seu corpo magro e olhos de assombro
um diamante vivo em cada pálpebra
Glauber Rocha ressuscitado em Brasília
dirige tudo aos berros e euforia
(como todo bom baiano
sorri irônico como um Caetano)

tudo é sonho
tudo é vermelho
tudo cheira a esgoto a céu aberto
tudo cheira a vidro quebrado e hospital

as mesas dos botecos se embriagam
devoram as palavras que os poetas lhes derramam
lambidas por lagartos abissais
a cidade (e suas asas)
é um poço sob os discos voadores

degraus vermelhos




Edson Bueno de Camargo

a velha casa
espera-me em sonhos e pesadelos
como o desvão
de fraturas no cimentado
e nos vãos da calçada de tijolos refratários
(e suas superfícies vítreas)

assim como as rangedoras portas e janelas
taramelas que cantavam
anunciando as chegadas e partidas

os lumes tentavam
desesperados furar o escuro da noite
onde vaga-lumes verdes
emitiam estranhos sinais
e olhos infantis e medrosos
viam coisas em meio às sombras

noites sem lua
noite de assombro
de ouvir as formigas subindo na parede
e monstros sorridentes sobre o guarda roupa

piar de coruja
nos velhos esteios
silvo de vento que cortavam
as dobras dos corredores

a velha casa
sobrevive ao seu fim
a jovem que cresceu sobre suas raízes
ainda é árvore de seus tijolos

o tempo não comeu suas paredes
de argamassa de caulim e terra
de reboco que mostrava suas veias no verão
na caiação trincada
desenhando mapas imaginários
de lugares inexistentes
(mas ali presentes)

a velha casa
e sua varanda de degraus vermelhos
carrego-a nas costas
o tempo todo