domingo, 17 de maio de 2009

não sou mais sábio

Edson Bueno de Camargo

minha mãe olha-me a face
veja que os fios de minha barba
imitam o algodão ao Sol
como teus cabelos

agora estou tão velho como tu
e no dia que mais quero os teus braços
sou tão pesado que nem posso me carregar

minha mãe
o tempo passou para nós
e não sou mais sábio que ontem
dos meus dias de herói
só carrego cansaço
da trajetória que sei
só o caminho dos astros no céu
à passagem do zodíaco

mas ainda posso ver o Sol nascer
pelo vidro de meus óculos
esquentar o frio da noite das canelas cansadas
na quenturinha do sentado na soleira da porta da rua

minha mãe posso dividir um sorriso
e te abraçar um abraço amigo
te recontar histórias e cantigas
antes que o dia termine para nós

vísceras sentimentais




Edson Bueno de Camargo



mulher que amo com as tripas
que teu amor me alimente
que se avolume no ventre
que se ruminem as renúncias
digira todas as dúvidas
e o amor seja longo e contínuo

mulher que amo com os pulmões
que se inflem em fogo a cada respirar
queimando cada gota de oxigênio
em tua homenagem
e este amor me deixe sem fôlego
e a cada beijo carbono
não me sufoques nunca

mulher que amo com o coração
que todo meu sangue não seja suficiente
que se esculpa com carne e gelo estrutura
das todas que se constroem em vermelho vivo
que seja corda incontrolável
de relógios que devoram o tempo
e ainda assim permanecer o amor

mulher que amo com músculos e tendões
que minha carne te vista no frio
e se não suficiente uses minha pele
cubra a tua nudez toda noite
que seja tão quente cobertor
que não mais sintas frio nunca
para que não te esqueças no claro
este amor

mulher que amo com o fígado
e sorvas bílis como prova de amor
amor cultivado em humores com ódio
até que os olhos se esverdeiem de vez
mas que adestres esta toda cólera que trago
porque a fêmea é a domadora do macho
e é teu ventre geratriz do universo

mulher que amo com o baço
e converta esta douçura em açúcares
que bebes com lábios ávidos
onde toda a dor não é amarga
e convertas todo fel que há bebido antes

mulher que amo com os rins
e produzo jóia elástica
pedras de calcita e sal
para construir castelos de sonhos
e dedico a ti todas as cólicas
e a tortura nauseante
de estar dependurado em parede

mulher que amo com a gônadas
e por ti imito Urano se necessário
e sem estas ainda sou teu escravo
mas se me preservas
serei de teus desejos criado

e contudo que sou um homem
de vísceras sentimentais
pois te amo com o corpo todo
além do sublime desejo

quarta-feira, 13 de maio de 2009

pálpebra

Edson Bueno de Camargo

a minha pálpebra esquerda
carrega o peso de uma casa
casa de amplos ambientes
salas e objetos em desordem

o peso cronômetro
aumenta ao movimento do ponteiro
a minha pálpebra canhestra
já desdobra
como um vício

porque a água que a casa traz
já comeu séculos de vento
e a chuva precipita à chegada da tarde

monjolos batem igual a um ponto
batuque de grão esmagado
ritmo sem pressa da farinha grosseira
das que os dias nunca terminam
e nunca ninguém passa fome

a pálpebra verga à noite
quando finalmente durmo

asas de anjo

Edson Bueno de Camargo

livro com asas de anjo
traz palavras de ave
penas brancas ou azuis
poemas inflados de ar
palavras de peso menor
nunca chumbo, pedra ou dor

asas de morcego podem conter
a última luz do luar
flores de dente de leão (em fuga)
ronronados de gatos pequenos
canto do galo que acorda o sono
as coisas que foram esquecidas

um livro que voa à noite
tem que posar à tardinha
pôr-se a dormir em seu ninho
a digerir os sonhos roubados de véspera

boa hora

Edson Bueno de Camargo

abutres voam baixo
círculos perfeitos
matemáticos do ar e éter
constroem rotas magnéticas
onde o centro geodésico é a morte

é necessário morrer
para que nos visitem
estes anjos alados de negro
convidados de primeira e boa hora

nossos sonhos não tem a menor importância
nossas crenças de nada valem
também posses e poses não mais influenciam

para os que banqueteiam nossas carnes
todos somos iguais e requintado
bom alimento

a morte é a única real democrática
é anti-demográfica
é voltar aos nossos mais primitivos elementos