sexta-feira, 27 de maio de 2011

lento incenso



Edson Bueno de Camargo


as rosas apendoam no jardim
grandes buquês brancos
anunciam o fim do verão
tempestades de fim de março
a entoar hinos à gravidade

são sinos a tinir todos
com o som de trovões
de carvão ardente

este pedaço de mundo é a paz perdida
cela de monges montanheses
em pérfida misantropia

as dores do luto
não abandonaram
o choro convulsivo
de grandes cinzeiros cheios

precipita a fina garoa
e o cigarro queima lento incenso

o poema não se conjumina
à xícara abandonada
que faz aniversário de uma semana onde está

amianto



Edson Bueno de Camargo


vulva com dentes
de amianto
a mastigar o câncer de cada dia
fornalha de vitrificar entranhas
azulejos vermelhos
de sangue e água
ao calor que ali espera
guardar ternos
em conforto
de aquários precipitados

catedral de giz



Edson Bueno de Camargo


1

sólido silêncio
catedral de giz
esqueletos microscópicos calcinados
de tempo
até a cal

estuque a suster paredes eremitas
herméticas e hermafroditas
(o ápice da perfeição de dois mundos)

nada a dizer ao
canto do galo
de bronze
sobre a velha igreja barroca
e o tinir do sino oco do mundo
os metais vazios e seus dedos sangrentos
e gangrenados

o sol a pino
seca as sementes de amanhã e de toda a esperança
as calçadas divagam solas de sapato
e bitucas de cigarro

o vento mede as distancias
entre o sol e a terra e a terra e a lua
por duas vezes

grãos de areia contados em estrelas
e cisternas secas
e potes astecas quebrados

2

um cão corta o passeio
com feridas abertas
com lástimas de morte e saudades

um cão serpente
escamas lustras
de olhos luzidios
come os cabelos
do pesadelo

um cão menor
morto
jaz nas esquinas de água azul
como água fervendo

3

olhos de opala
(de mil cores brilhantes e vibrantes)
caleidoscópio de raízes e bétulas
espectro luminoso de toda a criação

4

ainda assim
corre todos os dias à espera

a estrada é a mesma de antes
ainda escorre o sangue abissal
dos dias ocos

beija a pálpebra com toda a pestilência
e é possível amar aqui
sobre os trapos rotos
que se transformaram estes dias
para todo o sempre e agora

mariposas



Edson Bueno de Camargo


um cão coleta seu latido
em uma lua descalça
que atravessa a rua molhada
diante de minha casa
onde o granito
a estilhaça em miríades
de pontos brancos

latido que se atreve ao brilho
luz de atrair mariposas
silício fundido e tratado
mecanismos complexos
e vácuo

não são visíveis as estrelas e vagalumes


tecido



Edson Bueno de Camargo


o poema se tece de muitas linhas
é tecido
pelo fio da linha
que compõe o contorno de cada palavra

palavras tecidas
já que tessitura vem de tecido
palavras de mesma raiz ancestral
fio a fio
meandros e laçadas

o texto é tear de palavras
lançadeiras diversas do verbo
entrecruzam o passado e o futuro
ferramentas de precisão e escritura
cálamo
pincel
outros

caminho para a tinta
descanso para o verbo

o umbigo




Edson Bueno de Camargo


centro geodésico do mundo
o umbigo
carvão e sal
ponto exato da criação de tudo
e da fundação da cidade que nos abriga e encarcera
com amor e avareza

cada corpo um universo
em um copo
preso aos círculos celestes
água que a tudo solve
mas não absolve pecados em pedaços

e mesmo assim tudo ressoa
tudo se liga em algum ponto

um oceano de viúvas negras
e seus ventres vermelhos como ampulhetas
espreitam no escuro
negro como pedras escarpadas e seus dentes
dois anéis de abismo
e a cópula sem libido
e o seguir atento

jardim dos deuses



Edson Bueno de Camargo


somos formigas no jardim de deus
que nos pisa distraído enquanto caminha

a terra ruge
e nos assustamos
e então nos inventamos deus
para aplacar o medo
e o fogo para matar o escuro

somos crianças no jardim do éden
em busca do esterco do crescimento
somos o pálio da explosão de uma super-nova
animal inquieto da criação

somos o galho da roseira que seca no inverno
e revive a primavera
crianças de pedra no jardim de correntes
sonhos de aço e balas de canhão

somos insetos verdes escalando a parede
ninfas de ontem
louva-a-deus em busca de copular hoje
lagartas de fogo em fúria
semente de nuncas
e facas afiadas de obsidiana preta

e contudo nem esbarramos nas saias de nossa mãe
que vaga nua no espaço de seus azuis
e seus irmãos errantes

e no entanto
térmites construímos casas e cidades
para serem derrubadas pelo vento
monumentos fantásticos para o tempo e o efêmero

somos formigas no jardim dos deuses
que nos pisam distraídos enquanto caminham