quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

inadvertidos



Edson Bueno de Camargo


o olfato capta cheiros como afetos
e a primavera desaba como cristais de gelo
fere a sensibilidade da retina do vento
com a luz coada de nuvens

fechar os olhos
e se sentir flutuar de braços abertos
com o ar nas pontas dos dedos

quando pisarmos a grama nova
inadvertidos
deixaremos o perfume de nossos passos






09/02/2011

Exercício de criação nº 10
http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/01/exercicio-de-criacao-n-10.html

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

placenta



Edson Bueno de Camargo


vento
desenha seu movimento na grama
uma mão invisível
acaricia os pelos de um gato imaginário
que se eriçam

a terra aparenta
ser um animal dócil
mas carrega as entranhas de felino e fera
a placenta da destruição espera

nos talos e espigas
se equilibram bicos de lacre
(aves clandestinas neste solo)
o macho e a fêmea
a ensinar a colheita a seus filhotes
juntos fazem a refeição
em espreita
batendo em revoada
até ao movimento do vento


2

neste canto do mundo
os pássaros vivem suas vidas
não são parte
das tragédias que os emolduram

este sinistro conjunto de prédios de calcário queimado
e esqueletos de ferro e aço
é uma casa da dor
onde se mordem as palavras
antes de alcançarem as línguas
todas as pústulas e dores
as partes finas do corpo
delicadamente cortadas
e extraídas

3

bebo o tropeço
dos insetos ao rés do chão
em sua marcha perene
que pode abolir o tempo

onde tudo é uma máquina de devoração


4

ai de nós que sabemos
de nossas dores
e dos dias de morrer
após os dias de viver
escritos no livro dos testemunhos

e do quanto nos recusamos a esta justa medida

5

agora é hora
de só observar
e aceitar a aragem
acariciar com suavidade
a grama


hai-kais


Edson Bueno de Camargo

andam aos pares
as aves
na primavera


o bico de lacre
se farta de grãos
estação de colheita


com seu desenho
a brisa
alisa a grama


no verde gramado
o dente de leão
põe pontos amarelos


a haste pende
ao peso dos grãos
tempo de deitar pendão




(Seqüência de hai-kais compostos no estacionamento do Hospital Estadual Mario Covas ao observar um pequeno trecho de ajardinamento mal cuidado.)

gravidade



 Edson Bueno de Camargo

invertido
o enorme pinheiro
permanece sobre o nada
e as muitas correntes que o prendem
também o salvam da queda


sobre o abismo
permanece a árvore
acorrentada pelas raízes
que bebem o céu quase sem luz
e seus galhos
mergulham no abismo
chovendo suas folhas uma a uma
perdidas para a gravidade


modorra




Edson Bueno de Camargo

o sono
corcunda e torpe
(a tocar os sinos da catedral)
que vai crescendo na ponta dos dedos
em galhos secos e quebradiços
e se avoluma em tronco morto

ainda a modorra e o sonho
(das asas escalpeladas dos anjos
e quedas sangrentas)
e o mar de suor que invade
cada cavidade sem destino
a emular a febre
com sua química de mar ancestral

caminha sonâmbulo pelo mundo
do fazer de coisas e ofícios
cavar madeira para os pórticos do inferno
(a cata de palavras
o poeta a tomar a vida
do poema mudo
no pomar do Éden perdido)

não dão mais prazer o sal e o açúcar
o frio ou o calor
só o fitar sóis vermelhos
em tardes intermináveis de outono

a cada ano findo
a aproximação da aguda navalha
a contabilidade da morte

felizes os que morreram cedo
os poetas ainda jovens
os heróis
os tolos e os revolucionários
no tempo em que o espelho
ainda é só narciso
sem ter de aprender a inventariar a dor

oito cadáveres de deus



Edson Bueno de Camargo


oito cadáveres de deus
jazem lá fora
(sangue e moscas abençoados)
sobre o granito frio e molhado do calçamento
a espera que o sol nasça
e os anjos os busquem
e retornem novamente
após a chuva

:

os matei um a um
assim que nasciam
de abóbadas azuis celestes
até que tudo parou
e pude sentar nos degraus em ruína
e fumar um cigarro
como prêmio à tarefa realizada

depois dormi lentamente
atado aos teus cabelos
com a cabeça sobre teus pés
tentando entender uma passagem obscura do Zaratrusta
(Nietzsche me reprova de seus bigodes
o tempo todo)
nestes dias sem dias
que o mundo se transforma


Paraty 2006


Edson Bueno de Camargo


igreja um dia condenada a ruir
Nossa Senhora das Dores
vigia a baía de Paraty
com seus muros de pedra e branco caiado
posa para o pintor durante o dia

mais tarde a noite
o frio fazia
que me abraçasse
como querendo entrar em meu peito
e meus braços galhos grossos em tua cintura

o vento que raspava a superfície das ondas
vinha salgado e marinho em nossos lábios
ali na penumbra
éramos astrônomos persas
a tentar adivinhar os próximos anos

uma mulher ama a si mesma
no cimo no arrimo de pedra
em um canto escuro da praça
só somos despertados para sua presença
com os uivos de loba no cio
testemunho voyeur involuntário
quem sabe sua imaginação
nos colocou em um swing
do qual nunca saberemos
em nossa contemplação lunar

a lua
o motivo de estarmos lá
não só na praça
na cidade
na beira do rio
no poema

na cidade onde fiz quarenta anos
lobas uivam uma noite de orgasmos
nós
dois velhos amantes
esquecidos do medo
abraçados a observar o mar

os melhores dias de minha vida começaram