domingo, 30 de abril de 2006

ossos meus

Edson Bueno de Camargo


dependurados ossos meus
brincos grotescos de grito
salgueiros sem folhas
manto vegetal e estéril
comer inumano
inumados

imóvel cantoria de gemas preciosas
arados de ametistas
rasgam o ventre apodrecido
e fértil aos germes
sintoma de medos e calafrios

fantasmas analógicos
percorrem análogas alamedas
que vazias
consultam o vozeio de ausências

surge o novo cântico
o primeiro passo outra vez

meus ossos balançam com o vento
a corda podre ameaça romper

sábado, 29 de abril de 2006

Gitanes mentolados

Edson Bueno de Camargo


um velho cigano
coxo da esquerda
atravessa a rua
seus olhos
são velhos suíços embotados relógios
esses que faíscam
sobre o gato preto
com uma fita azul
e um anzol fisgado no focinho
o peixe ronrona dentro do gato
o garfo atirado na fúria

em frente para a viela
um café parisiense
o casal bebe lembranças do Reno
em copos azuis
semi embotados

se acreditar
o espírito ainda habita a garrafa
fumando Gitanes mentolados

sexta-feira, 28 de abril de 2006

desta forma

Edson Bueno de Camargo

1_
desta forma
banho-me em morfinas, águas - esquecimentos,
e finas pétalas
para que o espírito e a alma
durmam separados
e enovelados em ninhos ofídios

o campo do sonho
foi arado e plantado com ossos
dos renascidos de cinzas e brasas dormidas
dos borralhos dos remorsos remexidas pela manhã

2_
e se tu
podes despender de teu brilho
cerâmica em brasa
como derramas ouro em minha fronte

cerâmica de cal de ossos
de oleiros invisíveis
de úteros terrosos

terça-feira, 25 de abril de 2006

linguagem dos olhos

Edson Bueno de Camargo


permanecer com os meus pés na terra
até criarem raízes
permanecer em silêncio
sobre um colo feminino
até os olhos falarem
e com a linguagem dos olhos
podar todas asas

aludir o sentido da água parada
e criar o movimento onde não é mais possível
obter a aspereza de um tufo de plumas
e com ela lixar a superfície da córnea
até obter o mais branco exato

tomar por ordem a entropia
e saudar os rinocerontes que voam no inverno
com cal do meio fio
pedra por pedra
até que só reste o cinzel

beijar uma boca do caos
e entornar todas as preces vazias
fazer um rosário com a ponta dos dedos


e fiar com os pelos da púbis
uma roupa de ficar escondido

segunda-feira, 24 de abril de 2006

de um fragmento

Edson Bueno de Camargo

1_

de um fragmento de osso produzir a agulha
para costurar as palavras no céu da boca
e com cuidado arrancar as estrelas
que insistem em ficar entre os dentes

desfiar o lóbulo da orelha
com estilhaços de vidro
e urdir uma escuta refinada com aço cirúrgico e ouro

2_

descobrir que a palavra desejo
não se agrega com pouco barro
e produzir o estrondo secular
das pernas traseiras dos grilos

colocar dois dedos na vagina
úmida e quente
e testar a temperatura das fogueiras
que queimaram o dom e o prazer do ser feminino

que ser homem é carregar a aspiração
de sempre retornar a úteros escuros
descer as mais profundas fendas e cavernas
e que morrer é se vestir de terra
para que uma mãe telúrica venha nos afagar os cabelos

3_

olha como choram os meninos apartados
como colam os dedos e arrancam a pele sem meditação
que arranham o couro do peito
feridos de tanto sal e sol

e retalham o horizonte com tesouras sensatas
e puxam fio a fio produzindo um novelo
recozendo o céu com agulhas de ossos humanos

quinta-feira, 20 de abril de 2006

DE "OS MISTÉRIOS DO OFÍCIO"


Anna Akhmátova
AHHA AXMATOBA


"De que servem exércitos de canções
e o encanto das elegias sentimentais?
Para mim, na poesia, tudo tem de ser desmesurado,
e não do jeito como todo mundo faz.
Se vocês soubessem de que lixeira
saem, desavergonhados, os versos,
como dente-de-leão que brota ao pé da cerca,
como a bardana ou o cogumelo.
Um grito que vem do coração, o cheiro fresco de alcatrão,
o bolor oculto na parede...
E, de repente, a poesia soa, calorosa, terna,
Para a minha e tua alegria."

com luz a boca

Edson Bueno de Camargo


quando a folha pássaro
cortou os cordames
que intuíam o fluxo do fogo
sob às águas

senti que queima a pele nova
e pelos eriçados
como pergaminho envelhecido e seco
a antiga jaz sob a sombra
de carvalhos e florestas

liquefazem os sentidos
ácido cristalino sob a íris
quando cristais de cálcio se precipitam
carvão atmosférico
dor intermitente

há algo de divino
quando sorris com luz a boca
quando dormis vestida de pelos
sob lençol que não te esconde nada

e eu que observo
como fauno que deseja uma Deusa

sexta-feira, 14 de abril de 2006

Oroboros



sem fim
sem chegar
todos os caminhos me estão postos
e não tenho pés para nenhum

Foto de Cecília Camargo



Esta foto é parte do trabalho de minha companheira Cecília, bloguei mais para se perceber que a poesia pode ser captada não só com a palavra, mas também com a lente de uma máquina.

os cabelos de minha amada

Edson Bueno de Camargo

os cabelos de minha amada
me evolvem feito nuvem de pelos
cortina sedosa e térmica
roubando à noite
o privilégio do frio em meu corpo

& veste profana que me cobre
quando me dispo

os cabelos de minha amada
em noites de lua cheia
quando varrem o meu rosto
feito garoa fina
se torcem em finos fios

& forma corda e viola
para que a canção que soa no vento
embale depois o meu sono

os cabelos de minha amada
novelo de Ariadne
me conduzem pela noite escura
pelos labirintos que me afligem

& depois de forma calma e terna
me reconduzem para meus sonhos

esse cabelos de minha amada
tem cheiro e erva e flores
é como retorno a casa
terraço a contemplar deserto
animal de fruto liberto
os cabelos de minha amada

terça-feira, 11 de abril de 2006

o cal

Edson Bueno de Camargo

mais uma vez
o cal
cingindo de branco a parede de meu destino

o branco de ilhas gregas ao cair da tarde
moinhos de sal ao sol a pino
pás de vento braços monstros
neve que nunca verei

anônimo
autômato andando entre gentes

o carvão, a pena, a tecla, o medo
recusa a plataforma de celulose alcalina
ou na tela uma virtualidade tão enganosa
um cursor intermitente
acusando a impaciência do texto

domingo, 9 de abril de 2006

1969

já que o tempo não existe

Edson Bueno de Camargo

o sigilo dos lábios
líquido essência
linfa que corre nas veias
sangue arterial represado
ameaça romper os vasos
jorrar pela boca

os dentes
os nervos
verve verbo
puído e bolorento

redoma de cristal úmido e perene
retorna deste outro como sangue
que o tempo de ter medo terminou
e a morte não me parece tão ruim

se acaso a rima te persegue
pensa no outro que agora pouco
perdeu de vista o paraíso

toma deste fruto galho e preguiçoso
o repasto dos deuses não tem gosto
a eternidade não passa de um engodo
já que o tempo não existe

uma lagarta de fogo

Edson Bueno de Camargo


afagar os pelos
de uma lagarta de fogo
se afastar da dor e da febre

escutar os lamentos da pele
o eriçamento dos pelos
o veneno dos olhos

romper para dentro
a casca crisálida
libertar a libélula
fazer o sexo das efêmeras

afastar dos pelos da entrada
provar com um beijo
o amargo do orgasmo

abraçar com desejo a morte
disputar o abismo
dançar sobre espadas

isso me promete a carta do Enforcado
receber a visita do errante
demandar ao enigma da Esfinge
o seu nascimento nobre

quem terá condescendência de ser seu próprio carrasco?
quem diante do júri implorará clemência?
quem diante das grades de sua própria demência?

porque do arame fardado
tecido de suas vestes
lamentará todo ocorrido
para de novo cair em soberba

e provar da colher de chumbo derretido sobre a língua
e ter o apêndice de seu sexo arrancado
numa orgia de abelhas assassinas dos zangões que as defloram