segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

esboço



Leonardo da Vinci - esboço de asas

Edson Bueno de Camargo

a partir
do esboço incompleto
de uma pessoa

pode se tomar
da linha inconclusa
o traço de um pássaro

será um humano pássaro
ou pessoa
que aprendeu a bater suas asas

(?)

coisas de monstro

Pieter Brueghel, o Velho (flamengo; c. 1520/30-1569). O País da Cocagna, 1567. Óleo sobre painel, 52 x 78 cm


Edson Bueno de Camargo

cristalino perdido
dentre os dentes da alma
congelado à espera
onde se esconde o fogo

como Prometeu
esperei doar o fogo aos homens
e ao invés de calor
trouxe-lhes o frio

porque o ente humano
que caminha na certeza absoluta
torna-se um monstro
e faz coisas de monstro
e diz coisas de monstro
e será banido como tal

não espero mais o amor da humanidade
a paz celestial
ou cocanha eterna
troco por uma passagem para a nau dos insensatos

hoje
contento-me mais com uma migalha de desejo
uma velhice tranqüila
meu neto correndo pela casa
e a luz de uns certos olhos

guarda-chuvas coloridos



Edson Bueno de Camargo

a chuva esparsa
pede guarda-chuvas coloridos
nesta primavera fria
de calçadas molhadas

as andorinhas que invernam em minha rua
chegaram semana passada
em seus pequenos peitos
trazem um continente
países que nunca saberei em uma vida

o gato branco ronrona e ronda
nos lóbulos elétricos de seu cérebro
um caçador está em alerta

as árvores pendem de flores
que caem com o vento
colorindo a rua de amarelo e branco
roxo claro
as pétalas da roseira brava do meu jardim
sua alma de cinza de carmim
como desejo de brasa escondida
e as pitangas vermelhas vivas
chamas do fogo roubado por Prometeu

ai de mim que amei o humano
além das forças
transformado em Titã
pela força das circunstâncias
e poeta por amargo ofício

:
fico meditando sob gotas finas
a despeito de tantos corações vegetais
do grito das plantas
embriagadas pela estação
e de como o amor ao Sol
dá-lhe vida
e nos doam a vida

transcendida

Cozinha Caipira (Almeida Júnior - 1850/1899) 1895 - Óleo sobre tela


Edson Bueno de Camargo


a cozinha
e os picumãs
da casa da madrinha de meu pai
dominavam a casa inteira

o fogão de lenha
queimava dia e noite
em culto profano e inconsciente a Héstia
a fumaça
enovelava o ambiente
sempre envolvidos em trevas entorpecidas
com fachos de luz
cruzando do vão das telhas às paredes

menino assustado
sentia a presença
de todas as mulheres daquela cozinha
que me falavam
na língua incompreensível dos espectros
acocorados no tempo
seus pitos
suas mezinhas
seus pés descalços

a madrinha de meu pai
tinha os cabelos cinza
de uma alquimista
que sabia do caldo da cana
ao poder doce do melaço
muitas vezes transmutada e transcendida
olhos brilhantes de santidade

a noite
meu medo infantil
confortava-se ao bruxulear
das lamparinas de querosene
no escuro
adivinhava a presença de meu tio
pela brasa do pito de palha
e a voz grave de meu pai

hoje
desta noite solitária
quarenta anos saltam para trás no tempo
ainda sou um menino tonto
livre como um cão na chuva a correr no pasto

nascem secos



Edson Bueno de Camargo


homens nascidos
sob a lua minguante
ao beberem da água do nascimento
nascem secos como madeiro de esteio

vestidos de argamassa argilosa
são crus como adobe
secam ao sol
e se tornam duros
como terra batida de cupinzeiro
moldam-se ao vento
lutando contra sua direção
não se dobram
percorrem o seu desenho

no silêncio
falam línguas de fogo
e descansam nos olhos
anjos de cobre luzidio e flamejantes

aos que rebentam em julho
na procura por nuvens
quando ainda há pouca água nas cacimbas
e o calor do dia
tornam-se enigmáticos no frio da noite
quando se voltam a um ponto geográfico
como uma rosa dos ventos humana
(profetas do tempo)
determinam o lado que virá a chuva

e na velhice
estes seres
criaturas envenenadas pela palavra
passam a falar
a língua das bocas fechadas
e da fuligem dos fornos

arcam-se em reverências exacerbadas à terra
não morrem sem deixar nos pergaminhos
todos os seus possíveis epitáfios

inércia



Edson Bueno de Camargo


sonho com escadas em ruínas
e que estas se decaem a olhos vistos
escadas de terra e barro vermelho de minha infância
escoradas com madeira e estacas
descem morro abaixo
barrancos precários
a mercê da chuva
e do medo do tombo
e de andar pela enxurrada
e a chuva escorrendo pelos óculos
(embaçados)

sonho com muros azuis fechando a rua
e o impedimento de voltar ao passado
a rua de minha meninice
porque dentes de aço brilhante
já devoraram o que não existe

e o quintal de minha solidão absoluta
de onde nunca mais sai de mim mesmo
o sítio onde eu era único
e só aos olhos da chuva eu era possível
e o onanismo da auto-libido
não existe mais

e onde as bicas da água caiam
revelavam-se pedrinhas brilhantes
que um dia foram guardadas como tesouro
garimpeiro de sonhos perdidos
sonho com a estação antiga
e o trem que se vai
e junto comigo amigos também
perdidos
assistem ao comboio que vai embora

a passagem dos mortos me atormenta
suas vozes cada vez mais sonoras
e a descrença em tudo me atormenta
e a violência da paixão me abandona
e a ausência desta gera uma tortura
e que viver ainda
possa ser masoquismo
ou sadismo aos que me sobrevivem
ou uma vingança aos que não

e com inércia
a tudo respondo