domingo, 28 de junho de 2009

Rio Claro

Edson Bueno de Camargo

a flor da serralha
amarela meio Sol da tarde
meio gema de ovo cozido

as folhas escalas verdes
flor de todo lugar
e bombardeiros sementes
no vento sem peso

Rio Claro
a massa de ar carrega leve a rua
de braços abertos e olhos fechados
minúsculas ondas na areia
um deserto miniatura na porta da casa velha

abraçados pelo oxigênio do dia
corríamos descalços
como se livres dos sapatos
estivéssemos também da vida
minha avó no fundo da sala
(e seus bordados)
meu avô sentado nos degraus
pitando a palha

depois açúcar cristal de colherinha
com o gosto áspero de primeira infância
o que era simplicidade
para nós era um prêmio

eram verões de dias longos
camisa suada
e céu de aquarela
calças curtas
e canelas esfoladas de subir em jabuticabeiras

grandes bicicletas de aros longos
mal cabíamos de satisfação

perseguíamos o Sol
para que o dia não terminasse

meninos-pássaro

Edson Bueno de Camargo

esta manhã
meninos-pássaro
partiram para o Sol

tremeram de frio na primeira hora
e voaram
assim que o dia tocou suas asas

a grande pedra de céu
que nos cobre
mãe das coisas e das estrelas
era cinza e terna
o azul só mais tarde

esta tarde talvez chova
já sentimos a ausência dos meninos
e choramos
sem estes a terra envelhece

as fogueiras libertam fumaça branca
colunas que se erguem para o alto
e se dobram nas correntes de ar

o ar nestes lugares
corre como um rio
quiçá levem nosso cheiro
àqueles que partiram mais cedo

(e voltem um dia)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

o oráculo

Edson Bueno de Camargo

1

o oráculo se abaixa à terra
respira profundamente o seu cheiro
experimenta o gosto de seu sal
e escuta os gemidos
das multidões que ali passaram

o ferro tomado à terra
será devolvido em sangue
o que foi tomado pelo fogo
retornará em incêndio

o oráculo também chora
seus dedos tremem
e brotam-lhe folhas
há galhos de árvore no templo
verdes mesmo em face ao inverno

2

aqui dentro é perene primavera
não abram as portas
para que se conserve assim

caminhe seus pequenos pés
nos ladrilhos do pátio

pedra

Edson Bueno de Camargo

para Jorge de Barros

esconde a face
dos exilados
objetos em pedra

pedra-pão de duro comer
dente de cerâmica preta
e corte de obsidianas

pedra-pé
e suas plantas voltadas
faces à terra seca
ranhuras de rocha viva
famílias de pedra
nomes minerais
vermelhas

leprosários remotos
para exilar todo aquele de cepa rara
os que não coagulam
os que não coadunam
falam em língua de fogo
(como profetas)
e ferroadas de zangões

ao abandono
da palavra esfacelada
mica de pedra
sal
que se perde em graus
e os gumes de cobre

ainda seca a boca
a sílica do amargo da terra
blanco


aqui está o cálculo calcinado de enxofre
fogo PROMETido
que queima lento e doloroso

outono

Edson Bueno de Camargo


a rua
desdobra
em passos úmidos
neste outono
antecipação de forte inverno

o inverso da casa
é o desabrigo
buscar nas luzes confusas
o farol
o relógio
a alfanje

a ilusão que em tudo permanece
é o mesmo tempo agora
o que foi no princípio de tudo

suspeita-se que ainda é o passado
e este momento
um sonho ruim

terça-feira, 16 de junho de 2009

régua

Edson Bueno de Camargo

André e sua régua de medir mundos
caminhar por cadeiras altas
como cadeias montanhas
a tomar a medida de tudo
do batente da porta à ponte
em processo de construção do sonhar

André e seu apito de trem imaginário
o vapor e a fumaça preenchem a casa
de trilhos barulhentos e máquinas pesadas
coisas de construir coisas encadeadas
seu trenzinho azul da cor do planeta
a conduzir o arco-íris da luz de seus dentes

nada é por acaso

Edson Bueno de Camargo

esta noite
e seu cardume de sonhos afogados
água turva
que cobre o corpo da desesperada e inocente suicida
e seu colar de flores e ramos silvestres

(não confiou no canto do amado
que louco lhe confessou tudo)

cobre a superfície desta poça
de vidros e escamas
e tudo mais que é transparente e brilha
canto lírico
de barcos à deriva e a tripulação louca
rebentam em bancos de areia
onde esperam sereias
seduzem para o banquete

nada é por acaso
muito menos esta noite estreita de obuses
campos incendiados
em uma sinfonia de graves desafinados
de trompas mudas como a voz dos elefantes
(no entanto escuto)

a chuva cai
indiferente
assim como as lágrimas
assim como o calar

palma

Edson Bueno de Camargo

derramar
da palma da mão direita
toda a escuridão líquida
que se acumula

aprofundar
no vaticínio do sonho
medo do absurdo
de que ainda respiro
o mesmo ar a procura de guelras
que não estão

o ouvido queima a cada acorde
do dissonante som
do universo que nasce ainda

a ausência da luz devora mundos e estrelas
grito mudo da destruição
rompe o espaço
como uma luz que não existe mais

nas asas da borboleta
ao ruflar agora
todos os códigos decifrados da teoria do caos
pois tudo é conseqüência
de um único gesto