segunda-feira, 31 de julho de 2006

Três Atos.

Edson Bueno de Camargo




I


a fábrica
numa tarde
imensa
tijolos vermelhos

jaziam quarenta ventos
em postes iluminados
(vaga-lumes?)

trouxe-lhe um buquê de rosas
vermelhas
(na verdade era uma só)

falaram todas

um anel de uma pedra
a aliança se guardou

louças brancas no jantar


II


olha

embotado
(de sangue?)
o chão da fábrica

labirinto
de ladrilhos gastos e sujos

brinca
com os dentes expostos
encanamentos sobre a parede
qual vegetação

onde estão os brincos de ouro
o ouro das jaquetas nos dentes
ouro outro que luzia os seus olhos
teias de aranha
poeira secular
goteiras no velho telhado
a fábrica vazia
assim vazio o meu corpo
tal qual copas
no baralho aberto

o último suspiro
supera

retábulos
rótulas
ritos

cruzes que se atracam
nuvem no céu escuro

dê - nos
o que não tem
a paz


III


a secura de teus olhos
não me olham
porque entre as pernas
tens um diamante
(rubi?)

eu preciso lançar-me em braços
quebrar todos os protocolos
mesas e cadeiras

dar-me ao duro corpo
“um copo de cólera”

dar-me ao mesmo duro dia
o nome de um dia

a semana passa
devastada de seus dias

balanço a cabeça

Nemo nunca se encontrou
mesmo o duro golpe
um gole de vinho

já te encontrei
outros dias
o gozo antecede
o medo

já te tive
como mulher tantas e outras vezes

sempre parece a primeira
sempre é tímido o corpo
sempre a minha senhora

dulcemente
envolver meu rosto
com seus cabelos

em espanhol seriam
sus pelos

domingo, 30 de julho de 2006

o enxofre que cobre os dentes

Edson Bueno de Camargo


limpar o enxofre
que cobre
os dentes e a língua

lavar a boca
os lábios
com a água abundante

descobrir o rosto
da mortalha de linho
ressuscitar feito Lázaro
todos os dias

:-

afiar
a prata
que preenchem
os dentes

para o corte preciso
que precisam
os dentes

lavar o enxofre
que cobre
os dentes

todos os dias
lavar o corpo
com a água abundante
recobrir com a mortalha de linho

para ressuscitar como Lázaro
na manhã seguinte

:-

colher um lírio branco
do novo jardim
se conformar como Salomão
de nunca poder se vestir assim

sexta-feira, 28 de julho de 2006

“para belum”

Edson Bueno de Camargo

“se vis pacem, para belum”
máxima militar romana

a cova se mede a palmo
7 (sete) no plano das coisas precisas

o leite se entorna no branco
como branco é corpo do olho
(onde minúsculas veias
parecem a bacia de um rio)

como é branco o topo das nuvens
e das altas montanhas
carregam água além de segredos
carregam a memória do gelo
não é leite apesar de ter cor

quando busco
(também em mim)
a poesia
esqueço a rima, a calma e o clima
pressinto no ar o dilúvio

pedras no chão precipitado
granizo da barrigas das nuvens
quando entorna do branco no negro
derrama a chuva e o sagrado
segreda o tempo e a cor

quarta-feira, 26 de julho de 2006

Tatuei as letras.

Edson Bueno de Camargo

podia ser
uma única letra
o justaposto
e o princípio

estampei a tinta, aço e sangue
na altura das costas
bem aqui
no côncavo
sobre a omoplata
profundamente
quando não era mais ser

haviam
neste esféricos
de vidro soprado
as flores do século
do outro hemisfério

tatuei então
as letras de seu nome
nas pontas dos meus dedos
para que
no toque do sexo
te reescrevesse

costurei para dentro
o umbigo
para sem a marca
não ser mais nascido

(me desculpe a Mãe)

apaguei a letra de meu nome
e tornei a ser paria
entre os vivos

(me desculpe o Pai)

cabiam nestes hemisféricos
cálices de carmim transparente
álcool negado
às garrafas esféricas
de azul água feito turmalina

domingo, 23 de julho de 2006

asas

Edson Bueno de Camargo

pássaros mortos
possuem asas
mas não voam

outra ordem
os mantém
ao solo
não voam

grades de aço
são como a morte
abreviada
espera(m)

os muros e as roseiras
me acolhem

pedra de granito
não são verdes
se tornam
com o tempo
lhe roendo a alma

as goteiras
nas gárgulas do telhado
indicam a chuva
que não sinto

asas mortas
já não possuem pássaros
só penar
as penas
apenas

aforismos

Edson Bueno de Camargo

o chumbo
pingando lento
gota a gota
a recolher

uma colher
adicionada
sal do metal

observar no cadinho
rara transmutação

descansar no vazio
opaco
de uma noite sem lua

recolher toda chuva
num copo de alpaca

galhos de carvalho
se dobram
para criar a resistência

novas moedas
brilham moendas
de vidro sal

cal de fundição
o piso úmido
a lama breu
amalgamada a dedos pés

os corvos aludem
aos sinos da catedral
retalhos de pedra
vergam a assinatura do obreiro

há um sinal calado
retido na memória líquida
dos aforismos

domingo, 16 de julho de 2006

primeira carta

Edson Bueno de Camargo


minha primeira carta suicida, dirigi palavras para eu mesmo. embora tivesse firme determinação, sabia que no decorrer do tempo me faltaria a coragem de ir até o fim

os dias passaram invernos, as minhocas produziram húmus sob a terra, pus a termo idéias que não sobreviveram

minha segunda carta suicida, nem cheguei a terminar, num rompante de embriaguez, quebrei uma garrafa de um fino vinho, para cortar os pulsos com os cacos. A visão do vinho derramado antecipou o sangue, esvaecendo novamente o velho pensamento

guardei duas cartas no sótão do pensamento, vivi a inércia dos dias de das noites. Veio um tempo onde não eram possíveis mais cartas

quando senti a hóstia do pó
sob a língua
sangrava-me o nariz
feito beata e santa

bacias e pratos
recebiam goteiras
como relógio de água
neste
contava o intervalo
entre as chuvas
ratos corriam escadas

os cabelos brancos
caíram
vislumbrando a careca de crânio

a primavera
me encontrava nu
com um terço de madeira nas mãos
(T.S. Eliot ria em seu cruel abril)

não havia mais o conforto do vinho
não se deitariam mulheres com tão obscena criatura

minha terceira carta suicida
não encontrou quem a lesse

quinta-feira, 13 de julho de 2006

bibliotecas do inferno

Edson Bueno de Camargo

Sempre imaginei que livros queimados em praça pública em manifestações nazistas, livros queimados em fogueiras de autos de fé, livros triturados e amalgamados em novo papel higiênico, se transportavam para as bibliotecas do inferno. Os destruidores da Biblioteca de Alexandria, trazidos ali originalmente para cuidar dos volumes desta, catalogavam e cuidavam deste precioso acervo. Depois, bibliotecários sádicos, maus poetas e beletristas, passaram a cumprir ali seu castigo eterno. Mais tarde ainda censores papais e de insipientes ditaduras completaram os cargos remanescentes.

Demônios são criaturas que tem o saber como uma de sua fomes,
a ignorância dos homens aguça mais os seus apetites.

ratos devoravam pergaminhos
como queima agora
o azeite desta lâmpada

Xeque Ahmed Yassin
cumprimenta seus convidados
com seu sorriso senil

(vi o sorriso do demônio
quando devorava crianças
com lambidas de fogo)

no dia de sua morte
uma jovem
preparara seu chá
antes de lavar seus pés

a velhice
não traz confortos
Xeque Ahmed Yassin
lembra
de sua mocidade

esta noite
além de almas jovens
imoladas no fogo
o velho morrerá na porta da mesquita

segunda-feira, 10 de julho de 2006

a agulha

Edson Bueno de Camargo

a agulha
puxa a linha
junta carne com a carne
e o sangue com o sangue

segue-se uma onda
de calor e frio
o suor corre na testa
para formar uma gota
que corre o espaço vazio
entre o chão e a testa
(da nova agulha)

o frio quebra o gelo
um iceberg num copo
e um pouco de scoth

o toque do aço
abriga
carinho a carvão

corre por dentro do tecido
cose músculo e nervo

o espanto
não cabe
em uma sala branca
e anticéptica
(é preciso sair e fumar um cigarro)
( o último do maço)

escuta a dor
subindo do chão de ladrilhos
exuda agulhas pelo braço
rompe a pele frágil da barriga
(apenas uma menina)

empapa em sangue a camisa
(obra demoníaca ou milagre)

a agulha é do aço
mais puro
ponta de irídio
cura, do carvão e do cal

terça-feira, 4 de julho de 2006

tragam as maçanetas

Edson Bueno de Camargo

tragam as maçanetas e os gonzos das portas
arranquem os pregos das janelas e portas
os ferrolhos dos armários
amontoem o bronze e o ferro em frente a porta de minha casa

a forja já muito está sendo preparada
alimentada a suor e carvão

na casa de minha bem amada
fui colher umas lágrimas (e margaridas brancas)
num embolo de cristal

havia um peixe servido à mesa
como o ventre amarelo e aberto
que se destacava entre as pratas

mandem buscar mais água
o pequeno regato já não dá mais conta
das sedes

o braseiro consome e consome
carretas de carvão de pedra entopem a estrada

da casa da bem amada
vieram as pedras para esta escada
uma tonelada de jade
do verde esculpido e puro transparente

ainda não era nascido o Sol
quando começaram novamente os martelos e as bigornas
bem cedo
a hulha queimando vermelho de uma estrela
sob as colunas de fumaça negra

este fogo
devora quimeras natimortas e recém nascidas
neste poema prosaico e sem sentido

guarda os filhos numa gaveta

Edson Bueno de Camargo

todas as tardes, guarda os filhos numa gaveta, como quem guarda os filhos em uma gaveta, todo seu carinho de mãe para o retrato,

a de ter sobrado
amor para outro homem
mas como encontrá-lo
em um mar de pernas e braços

o risco do céu se esmaece, todo o contorno em rosa e sangue,

a lágrima
coletada com lenços de papel

a noite
vê dormir os filhos do retrato
as vezes a mais velha teima acordada
e dorme em seus braços
assim que a abraça

todas as manhãs ao chegar ao trabalho, tira os filhos da gaveta, como quem tira os filhos da gaveta e observa o retrato com todo seu carinho de mãe