terça-feira, 30 de maio de 2006

óbolo

Edson Bueno de Camargo

um peixe grotesco
ronda no quintal
(minha mãe imagina como espantá-lo)

a espada de Salomão
não expede mais justiça
o fio está cego
navalha abandonada na gaveta
cujo fio oxidado
guarda vestígios de sangue

(suicidas na banheira
os pulsos jorrando)

o ouro comestível
acrescenta com farinha

(os períodos longos
só chegarão na quinta)

o azeite jorra do sampo
mas não há mais leite e mel
os dentes do moinho
trituram elos do destino

com o ouro e a prata
tecem cordas para meu funeral

sobre a língua
um óbolo como pílula
ouro por açúcar

domingo, 28 de maio de 2006

inventar.

Edson Bueno de Camargo

1_

inventar uma linguagem antiga
rabisco após rabisco
muros pichados no centro velho
poemas de porta de banheiro
paredes da prisão

inventariar sobre papel
garatujas
com tinta preta e vermelha
copistas e estetas
de trágico destino

2_

um boneco
de pano
costurado na barriga
sementes de girassol e cabelo humano
suturas
grandes agulhas
ponto de fechar sacos de amiagem

a chama da vela
cera escura de abelha
pavio de roupas esfarrapadas
(o linho
invólucro dos mortos)

3_

triste
ter de costurar a própria roupa
de dormir eterno

Pena.

Edson Bueno de Camargo

a pena
que abate a bico
o pássaro
pesa do óleo
do dia negro

escorre das nuvens
em cascata invisível

cardos selvagens
recobrem as encostas
de vegetação
quase nua

a Serra da Estrela
convida ao aconchego
de lareiras
e leitura de poetas mortos

quarta-feira, 24 de maio de 2006

Meu neto ano 1 - 24/05/2006

Aniversário de meu neto.

Hoje dia 24 de maio de 2006 meu netinho faz seu primeiro aniversário.

decifrar o conteúdo

Edson Bueno de Camargo


1_

se pudesse
decifrar o conteúdo
das gavetas

como cartomante cega
que tateia os sulcos das mãos
lendo o futuro em braile

do fruto selvagem
que se desidrata
(como marcador do tempo)
e denuncia

sementes dispersas
carregadas de presságio
(e possibilidades interrompidas)


2_

acreditar na promessa
que segreda cada lume
que o vento não trouxe

ainda pode cortar
a navalha enferrujada
que caiu no ostracismo e anacronismo

brincos de cigana
(nunca usados)
papeis amarelos
com sua escrita roxa

moedas de rincões desconhecidos
países que não constam mais
em compêndios e mapas

as fronteiras foram (inter)rompidas
pelas esteiras dos tanques
e tiranos perturbadores

(outros pela geopolítica do ódio
e do racismo)
3 _

haverão (sempre)
cartas que
nunca serão lidas

números de tômbola
e naipes que se destacaram dos baralhos

pedras de mica
e turmalinas sem nenhum valor

4_

sempre sinto que é meu
o lugar do enforcado

carrego o ás de espadas
o gládio negro do destino
cravado em pelo

5_

sempre haverá margaridas selvagens
e dentes de leão

domingo, 21 de maio de 2006

suas cores

Edson Bueno de Camargo

o escombro nu
de muros arcaicos
cicatriz
em forma de caliça e tijolos mostrando o seu vermelho

quasi-encobrem
sorriso delicado de resina
imita porcelana
(da china)

o joio passa por trigo
enquanto isso eu terno
depois lança o inverno
e cobre com ternura e branco a morte

o que entende de delicadezas
o duro cimento
que separa asfalto e terra

berços de terra fofa
regados a lágrima farta
flores que ontem eram vivas
(suas cores)

escolho para mim a cesta de espinhos
pois tuas rosas não mais sorriem

vasos bonsai

Edson Bueno de Camargo

cultivar culpas
em vasos bonsai
iquebanas quebrados
a arenga triste e monótona
da casa vizinha
e as portas da rua abertas

os mantras se perdem
entre os fios dos postes
e aves rotineiras

quinta-feira, 18 de maio de 2006

o Enforcado

Edson Bueno de Camargo

se sair o Enforcado
me recuo a lê-lo
mesmo que em certa medida
funcionar como libertação

mil vezes me caiu a morte
outras centena a coroa de fogo
que porta a Imperatriz

o futuro lento e poderoso
cheira a pó de ossos
moídos num moinho velho e carcomido
com suas pás movidas pelo tempo

conheço o velhinho insano
que alimenta o fogo
como a palha seca
e cabelo humano

que mistura o cal
em argila mole
molda peça a peça
e cozinha em fogo preguiçoso

ai de quem comer
deste pão feito de mortos
será condenado a escrever poesia

terça-feira, 16 de maio de 2006

cronômetro de parede

Edson Bueno de Camargo


“Nomeei-vos três metamorfoses do espírito:
como o espírito tornou-se camelo
e o camelo leão e o leão, por fim criança.
Assim falou Zaratrusta”

Friedrich W. Nietzsche.


o fósforo do riso
o medo compasso
medido na retícula
relógio com dois ponteiros de segundo
cronômetro de parede
um correndo atrás do outro

a desenvoltura do ânimo
respiro da terra
acumula cristais de prata e crisântemos

sopro o outro vidro
àquele sem fronteiras exatas
a agulha que rabisca na pele
arabescos sem sentido
garatujas de idioma imaginável

a letra que partiu minha língua
se inflou de vermelho
os dentes numa bandeja de aço
revela o frio em minha espinha
o temor em cada esquina
aqui dentro do quarto
sentado em minha poltrona de leitura

arrancar as escamas do dragão
com uma pinça de selos
observar com uma lupa de vidro azul
detalhes e filigranas
o mapa da retina do leão

domingo, 14 de maio de 2006

usos do garfo e faca

Edson Bueno de Camargo

pedra areia cimento

os usos do garfo e faca à mesa
não será mais opcional
durante a segunda metade do século XXI

teremos diplomas de civilidade
sopraremos as velas do bolo à tarde
desfiaremos rosários de contas indianas
crucificaremos um cristo todas às manhãs
que morrerá ao meio dia
e ressuscitará às 17h00 em ponto
para sentar à mesa do chá

haverá toalhas brancas
para que possa verter o sangue
e nos redimir de nossos pecados

à noite tomados de horror e fúria
o açoitaremos quase á morte
para o crucificarmos no novo dia

dois lumes à mão

Edson Bueno de Camargo

o homem carrega dois lumes à mão
a mulher a luz dentro da boca

e eu esqueço do sexo sangrando
quando do retorno da dor
algo quebrou aqui dentro de mim

minha mãe me deu
mais do que a dádiva
uma pedra negra e o cheiro de escuro
a pérola pingando azeite
na lamparina que não acende

mais tarde
o suor de minha filha
no parto de meu neto
tornou ainda sagrada minha dor
de existir além de minha vida
de ser mais à frente de meu ser

(se já morri
porque ando entre os vivos?)

porquanto o nervo exposto
do dente que nunca arranquei
a morte a mim destinada
mais um vez a perdi

sexta-feira, 12 de maio de 2006

rebenta no sal

Edson Bueno de Camargo

1_

trem sempre nos carrega
para o caminho ao contrário
a sensação úmida
do pensamento do aço
que canta no contato dos trilhos

(carece de entender
não ter pego a condução errada)

a composição em desordem
papeis e lixos diversos
memória neblina
cadáveres de cigarros

um símbolo de infinito
grafitado no teto
o alfa e o Omega
uma praga para o fim do mundo

2_

do trem para o chão
serpentes azuladas
correndo pela cordilheira de ossos atravessados

ossatura de artelhos
astrágalos da sorte
cortados em francos


3_

árvores de chifres de demônios
fêmures que sustentam o céu

trapos velhos
pendurados no arame farpado

4_

velho barco
de quilhas abertas
rebenta no sal

quarta-feira, 10 de maio de 2006

o último girassol de tua boca

Edson Bueno de Camargo

o duro cristal de tua íris
reflete meu desejo
que em gozo ardente
parte em febre
abraçado ao último girassol de tua boca
que espremem com vento
as cabeças brancas dos dentes de leão
explodem em nuvens

urge que façamos o sexo
aqui e no agora sempre
porque o negro odor da santidade
nos persegue em nossos medos
nos excluem de nosso prazer
como se esgoto da civilização fosse o orgasmo
não poluir o mundo de filhos

se fosse sempre o orgasmo não se construiriam muros
nem catedrais
nem presídios

olhe meu amor
as naves para Vênus
partiram anteontem
e hoje se sujo de amora
no bico do teu seio
e o único Deus que respeito agora
é a mulher
a cabeça em teu ventre é oração
o teu sexo úmido são meus cânones

porque a urgência de poesia
chegou bem tarde
e aqueles que amam a justiça
serão bem aventurados

onde cabe o silêncio

Edson Bueno de Camargo

onde cabe o silêncio nesta sala??
seu lustre de cristais sujos
de fumaça preenchido
dos pés ao topo da cabeça
todos os cigarros já foram fumados
o que faz este palito de fósforo em minha mão?

sapatos de chumbo
hoje
pesarão mais amanhã
o olho seco
o anel
nesta roda de samba para a eternidade

passarão por aqui as mães e suas filhas
concebidas em festas inúteis
ao desamparo e ainda falta de orgasmo

recolher o álcool no dia seguinte
na contagem de garrafas vazias
pelo catador de papel

lá dentro o barulho continua
com um compasso quebrado e tilintar de ossos secos

sábado, 6 de maio de 2006

cavalos não voam

Edson Bueno de Camargo

1_

se cavalos não voam
dromedários não dormem em cabanas de madeira
ursos cobrem o nariz com a pata
quando caçam porque é preto

a pele da foca
serve de cobertor e abrigo ao esquimó
mas é preciso que esteja não viva

assim é o desejo do homem
não vivo quando vestido
com as costuras aparecendo do avesso

assim é o desejo da mulher
vestida quando não viva
sempre do avesso


2_

os dentes
parafusados à mesa
brocam o vinco
por onde escorre o vinho desta madrugada

da dobra do couro de búfalo
(lento) substituí a úlcera
úmida vagina


3_

comprimidos
triangulares e roxos
supedâneo de esquecimento
placebo para as certezas cínicas

afiada navalha

Edson Bueno de Camargo

uma concha
afiada navalha

lamina calcária e corte

(o beijo de madrepérola)

medusas
de água morna
verde salgado
corais em muros subaquáticos

com cem olhos de peixe
da dor de submeter-se

baleias e cetáceos vários
quebraram barreiras
duras e caras


é possível fazer sexo
usando apenas palavras?

segunda-feira, 1 de maio de 2006

todos los hombres son Angeles

Edson Bueno de Camargo


a estrela rompe
a rota
e ilumina distraída
o quintal desta minha casa

entre os corredores
uma luz fantasmagórica
que tem medo de espelhos
e janelas

carece de porta
esse cômodo que contém água
e cerâmica colorida

a velha perra dormita
o sonho de velhas calçadas
caminha sonora e late

a garagem abandonada aos livros
móveis velhos e licores empoeirados

mira madre
todos los hombres
son Angeles
pero sí
sin asas