quarta-feira, 28 de junho de 2006

enoc

Edson Bueno de Camargo

1_

preso a guelra do peixe
onde o azul é mais lento
esforço-me para respirar
tanto fundo como turvo
toda água dos pulmões

será a memória
que não se desapega
quem nos atraiçoa
tentar respirar líquido
quando tudo que nos resta é ar

2_

a fauna de minha narina esquerda
morre a todo amanhecer
quando se avermelha o ferro
e borbulha a água
e os velhos se vestem de luto
tragam a dor
e cospem no chão

para me escarnecer

3_

reconheço ainda mais este meu erro
um jorro de paixão impoluta
todo o pecado de um lençol

4_

Eros e Tânatos
são irmão de sangue
compartilham o mesmo pai
um dia
quando menos se espera
um matará o outro
afogados no lago do jardim
(narcisos, observam com certo receio)

neste dia se servirá um banquete
quando aos pés dos convivas
se servirá a minha carne

5_

Caim matou em Abel
aquilo que mais amara
não suportou ter de ter ciúmes de seu Deus
(depois fundou a civilização
a cidade de nome de seu filho)

também não O tenho suportado
assim como
Lúcifer traiu Deus por ciúmes
traiu Judas
a Cristo

sempre por amor
se matou e se deixou matar
e assim será por séculos e séculos

6_

que vale desengonçado
tenho por ver
em minha frente

morrerei mais um pouco hoje
mais do que ontem
o resto será por amanhã

a voz de teus filhos
nunca será a tua voz
pássaros que deixam o ninho
o fazem para não mais voltar

7_

as trombetas que
derrubaram as muralhas de Jericó
agora soam em meus ouvidos

hoje visto os fiapos
daqueles panos que me cobriram o corpo
corvos voam em círculos
por meu novo jardim

segunda-feira, 26 de junho de 2006

“London Bridge”

Edson Bueno de Camargo


restaram os fósseis
da ilusão do paraíso
livros no canto da sala
pérolas presas em pérgulas

clowns assustando crianças
nas esquinas
de uma Londres sombria
(assisti tudo pela vidraça
embaçada de fuligem carvão)

sobraram os fósforos
do incêndio na torre
a ponte agoniza
tijolos carbonizados

touros de chifres ensangüentados
em ruas de São Firmin
(Hemingway lamenta ainda os sinos que dobram)
um peregrino desfia contas e vieiras
Santiago terá de esperar mais uns anos

o toco do último cigarro
pigarro de nicotina
(esta neblina dá para se cortar com uma faca)

na torre a troca da guarda
sobre o Tamisa
acendem-se as luzes de popa
o fog se espessa
da passarela encoberta no Alto da Serra
se ouvem sirenes de barcos sob a ponte


“London Bridge falling down, falling down, falling down...”

domingo, 18 de junho de 2006

copos abandonados

Edson Bueno de Camargo

andar pela casa vazia
em outra noite com areia nos olhos
e grilos nos ouvidos
se fazer de sonâmbulo
no tropeço no escuro

copos abandonados sobre a mesa
poeira sobre os livros

arrepio ao olhar para o escuro
sabe-se
no canto obscuro
as aranhas tecendo em linho
com teia, destino e vítimas
para que o usemos como mortalha

dormir na cama sozinho
depois do tempo remoto
andar sobre o vidro moído
de verde e ressentimento
é como alugar o corpo
e viver a ausência
acordar de sobressalto
suando e sem memória
com
o uivo dos lobos
que circunda a casa

esta, que sem você
passa a ser meu eterno pesadelo

segunda-feira, 12 de junho de 2006

ao cair os restos

Edson Bueno de Camargo
_

ao cair os restos da tarde
em trapos de bandeira
espalma a fina poeira
recolhe-os na palma aberta

contrários entre si são os jogos
auto-sedução e comiseração
perdidos em auto flagelo

os dados atirados ao acaso
ricocheteiam no tampo da mesa
observo bolas pretas
sulcadas em velho marfim
(amarelo e com micro-trincas)
se confundem ao buscar
o pano verde e horizonte

não há amigos
quem são os que se vislumbram
nos outros cômodos
escondidos que estão
nas frinchas do assoalho
no smog da noite e cigarros

repleto de olhos tristes
ao mesmo tempo vingativos
neblinas acusadoras

a esses
servimos adagas e garfos
forma de peixe e cabos de ágatas azuis
sobre baixelas de prata e gelo
(o gelo fino dos trópicos)

_

as cartas se abrir
e sem resposta
sussurram arengas antigas
(guardadas num baú
ainda sob a cama)

_

tenho vivido como que morto todos os dias
ressuscito a fórceps todas a manhãs
remorro de novo ao escurecer

não há gozo sobre a glória efêmera
não o menor prazer sem conseqüências
remorsos com pontas de diamantes

eu que tenho todas as respostas
procuro perguntas aos forasteiros
e monges mendicantes de pés feridos

folheio um novo livro
o Oráculo Pessoal
de Baltazar Gracián

o prudente é invisível
aos olhos de todo o Mal

sexta-feira, 9 de junho de 2006

vermelho vivo

Edson Bueno de Camargo

plantar lanças de ferro
em um vaso de jardim
argila torna em metal
brota em terra fértil

roseiras-arame farpados
espinhos-barbatana de tubarão

seara de chumbo-sangue
frutos de vidro-cor
do verde ao vermelho vivo

imaginária

Edson Bueno de Camargo

lapela de casaco
o brilho do broche
berloques e
dragonas pretas e cinzas
o frio europeu daquela noite

o menino corria
atrás de uma bola
(imaginária)
um gomo de cada cor
giravam o tempo todo

(ali estava ela novamente)
não é mais menina
agora mulher
puxa a filha pela mão
severa
(com sua feminilidade)
(negada)


cheiro de alfazema, cloro
e formol
gaze e algodão
curar feridas
(que ainda)
teimam em não cicatrizar

terça-feira, 6 de junho de 2006

anti-chama

Edson Bueno de Camargo

velas queimam
sem emitir luz
crepita a anti-chama
gerando a escuridão

o olho que tudo vê
o ouvido que a tudo escuta
olvidam cegos
não refletem em espelhos

uma lupa azul
que omite a vogal “a”
coaduna
as letras
testamento ainda não escrito
o evangelho oculto da vergonha

na mesinha da cabeceira
um jarro de alças minúsculas
um número de telefone
analgésicos e runas sagradas
sobre tábua de carvalho

fechadura

Edson Bueno de Camargo

espia
pelo buraco da fechadura
um vermelho coração
espetado em agulha de tricô

a caixa de bordados de Alice
tem vida própria
agulha e linhas

uma gota de lágrima
converte o mesmo estupor

pingo de sangue
no ladrilho
ramais
quadrados de branco
do quase amarelo da memória

recordações em sépia
longas tardes de inverno
te esperaram em cada esquina
te agarram pelo baço
a cada gole insípido

a Rainha de Copas tem um lugar para sua cabeça

sábado, 3 de junho de 2006

um grilo passeia

Edson Bueno de Camargo

um grilo passeia numa folha
acompanha
um olho em cada esquina

um retângulo dourado
requadra toda cidade

onde Deus fez um ninho
ilumina pela rosácea
da catedral

cigarrinhas comem o pólen
dos abetos distantes da praça
pinheiros seculares
expatriados sem consulta

mendigos jogam dados
apostando cacarecos e raras moedas

o Jovem Deus assiste a tudo
da janela lateral do altar
o outro cristo
tresloucado
atravessa
e a multidão aos gritos

grilos pretos
respondendo com canções em seus violinos
as cigarras cantam
até romper a praça sem sentido

o vagabundo fuma cigarros
o ganhos dos dados