quarta-feira, 30 de abril de 2008

a casa

Edson Bueno de Camargo


o homem carrega a casa sobre a cabeça
forra esta habitação com galhos de salgueiro
onde as folhas choram o sofrimento dos dias
das rosas que florescem do choro de santas martirizadas
e os espinhos nos pés dos homens que fazem a passagem
todos os caminhos são os corredores de dentro da casa
os umbrais são pórticos para visões do infinito
espelhos de Narciso a vingar o inconveniente destino

a cabaça com água está ao pé da porta
foi colhida na grande talha
para matar a sede destes visitantes que chegam
à porta
com suas ripas sólidas e travessões assimétricos
a soleira se verga ao estreito dos anos
que passam como paisagem da pequena janela da porta dos fundos
carregam todos os passos sobre a terra
trazem as acomodações da terra e suas partículas
as partituras que descrevem o ronco surdo das placas tectônicas
a energia telúrica que move pássaros para o sul e homens para o norte
os lunares e as marés dentro da alma mar salgado
o banho cósmico que se dá a todo momento
a luz de estrelas invisíveis e explosões de novas luminosas

o homem traz o caixão para seu próprio enterro
a grande obra de carpintaria e esmero
jaz na sala a espera do dia certo
os pregos na madeira carregam a memória do fogo
o cal e o carvão que queimaram para seu nascimento
nunca entram dentro da casa
os portais e portões estão sempre fechados aos viventes
os vidros das janelas só deixam entrar a luz depois de estilhaçada
os fiapos de fótons irreconhecíveis se reconstituem em frágil tecido

a casa flutua sobre os escombros que ela será
a lembrança são sulcos na terra d’onde foi arrancada
o homem já foi um menino sonhador
os meninos costuram o céu com seus dedos
cavalgam sonhos em forma de algodão
cravam dragões na espinha da água que sobe ao céu

a casa viaja ao mundo do incerto
é, foi e sempre será
os degraus vermelhos onde todos tem a primeira queda

uma cigarra

Edson Bueno de Camargo

uma cigarra
afina sua viola de jade
que em sua cor esmeralda
soa como botões de jasmim
em cinco pétalas brancas
com a alma amarela
outras flores e ramos de bétula

o som tem gosto de açúcar
sentido pela primeira vez
tomado em garrafas de néctar
e colherinhas de alpaca

a harmonia refrata tons verde metálicos
roubados das roupas de besouros
ao sol depois da chuva
emprestam sem saber as couraças
a voz ao instrumento
quando começa o cair da tarde

um grilo toca seu violino de cobre
que tomou ao enternecer à tarde
em uma febre de temer que noite caia
e nunca volte o dia

sapos acompanham com sua orquestra
de tímpanos, trompas e fagotes
concertando desde o lago

a cigarra em uníssono
o besouro e seus cornos de ouro e zinco
(cornucópia perdida aos seres)
o grilo e seu ofício
os sapos ferreiros a frio
(para o medo das fadas)

o azul se desmonta em bronze
o acaso do dia em naufrágio
as nuvens de algodão doce
os jasmins dormem á noite
quando não escutamos sua cor

o lago responde ao universo
contando suas próprias estrelas
mimo que se dá de presente todas as noites
pingos de luz no liso da água
e uma lua para poetas embriagados

sexta-feira, 11 de abril de 2008

cabalísticos

Edson Bueno de Camargo

mulheres que cheiram a incenso
não carregam cântaros de água
nos cabelos
não esperam os Ulisses que retornam
não tecem tapeçarias de Penélope
urdem crisálidas entre os dentes
como se sorrissem borboletas laranjas
dormem sob o céu de Mercúrio
e quando chove
dançam com serpentes cingidas à cintura


mulheres com orelhas pequenas
costuram a audição
em bordas de jarros de estanho
carregam nos pulsos sinais cabalísticos
estigmas de deuses ainda não nascidos
não enrolam o céu de estrelas
e não uivam para a lua


mulheres de pés azuis
não contam os dias
e não contam as horas
passam o tempo em buracos de minhoca
ao abrigo de buracos negros
não lavam os cabelos às sextas-feiras
não jogam amarelinha
que contêm inferno
coletam insetos miúdos em caixas de fósforos
e conhecem o outro lado da lua


mulheres da beira do mar
suturam redes com a seda retirada do baço
escamam peixes e os retalham
sem um reclamar sequer
não choram em enterros
e se vestem de azul por ocasião de luto
seus filhos respiram como se possuíssem guelras
e pés com nadadeiras
têm medo de altura,
mas não temem a água
costuram para seus homens fatos brancos
e se enfeitam com flores da mata
e quando a lua cheia cai em segundas-feiras
desprendem um suave cheiro de maresia


mulheres com olhos negros
conhecem a profundidade dos poços
se refletem em poças de água da chuva
sabem que o fogo vive
na alma negra do carvão
coletam libélulas para seu deleite
e as soltam vivas
rindo de suas revoadas
não costumam dizer mentiras
não falam muito à noite
nas luas novas buscam refúgio
na escuridão
quando amam
é normal se ouvirem trovões
à distância

gaze e linho

Edson Bueno de Camargo

e tu
que pisas distraída em estrelas
(como se fala na velha canção)
o fósforo de teu sorriso
ilumina esta noite
em que aguardo ansioso
o retorno da lua em meu sol
(ou em teu, não sei)

tu que traz no ventre o cheiro e o som da relva
( e ali me deito esplendido)
tens a voz de água corrente
chuva caindo
e ave migrando para o norte

é trágico amar desta forma
não se opor ao vento e à chuva
caminhar como se o abismo não existisse

na mão fechada carregas um segredo de menina
um pedaço de luz colhido agora
envolvido em gaze e linho

conto cataclismos em teu novo olho
aquele que te dei
para enxergar horizontes
aquele que ainda não foi revelado

esta noite entôo as cantigas suicidas
e dou de comer a uma ternura
com pão molhado em orvalho
para que esta me segrede
ao ouvido
o terrível destino dos peregrinos

suficiente

Edson Bueno de Camargo

estou te reescrevendo esta noite
de novo
de novo ainda
e mais uma vez como tem acontecido

de tal modo
que tudo que já tenho escrito
não seja o suficiente

pois o que me afaga
em versos transcritos e invisíveis
tem teu cheiro e cor
tem teu jeito ancestral de mulheres feiticeiras
dançarinas da lua
em encruzilhadas em tê

sábado, 5 de abril de 2008

amiúde

Edson Bueno de Camargo

uma lâmina de machado
fita longo o tempo, uma esmeralda
líquida
que cobre a areia
de cinzas vulcânicas
gozo de deusa

(calor de vulcões
que recusa o tabernáculo,
onde não entram fêmeas)

há um grito neolítico encravado na espinha dorsal
cortam pelos e madeiras cruas
crânios tomados ao inimigo

a orelha estabelece dois pontos
de fuga
em sangue encardido

comem as nuvens vermes ancestrais
criaturas que primeiro sonharam e se sentiram
que produzem duas luas plenas e férteis
derramadas
de amargo medo e coisas pequenas

amiúde o tempo fermentou das dádivas
dos novos deuses

(mas, não se calaram os mais velhos)

cabem em folhas de carvalho
marrom claras quase terra
uma dança ocre
recobre faces novas
e copas de chifres

bebamos

origamis

Edson Bueno de Camargo


última versão:

tuas palavras são
origamis delicados

que cuidadoso
desdobro
dobradura por dobradura do ouvido

e como ourives sem precisão
que sou
tento decifrá-las