sexta-feira, 3 de outubro de 2008

quero uma mulher que seja

Edson Bueno de Camargo

de qual planeta vem estas mulheres das revistas?
são todas belas e inexistentes
quero uma mulher real
que possa pegar a mão
o pé
e todo o resto que é tão bom
quero uma mulher em carne e osso
e pele
muita pele para afagar

quero ser o amante da moça sem graça
que anda na praça
em busca do sonho
quero ser o namorado da motorista do ônibus
o caso secreto da policial e seu batom discreto
da feirante
da mulher da bilheteria do trólebus
da estudante tardia
da professora

quero uma mulher com cheiro de produção
de graxa
de graça
de peixe
de sopa fervendo
de margaridas
de rosas
de criança amamentada
de lagartixas na parede da velha casa

quero uma mulher que chore meus mortos
que me xingue zangada
aos meus deslizes
e que me beije
quando lhe der na telha
em um rasgo de ternura
que tenha um olhar de mar profundo
e de estrelas caindo do céu

quero uma mulher que compre lingeries sensuais no camelô
no segredo das ruas
que vista números grandes
que exiba suas dobras sem medo
que saiba que é gostosa
sem precisar ser a mulher manequim
da propaganda de cerveja

quero uma mulher que tenha o sexo tão quente
e confortável o suficiente
para derreter todas as certezas absolutas
e deitar por terra todas as filosofias dos homens
que seja uma mulher total
que segure minha cabeça com ternura e me esprema em teus seios
que eu possa ser menino em teu colo
que me amarre a cintura com tuas pernas
que não tenha medo do claro
e que ame no escuro só por pura diversão

quero uma mulher para envelhecermos juntos
que seja mãe
irmã e confidente
mas que nunca esqueça de ser minha mulher
e que sou teu homem

que possamos das as mãos no cais
olhando para a lua
contrair núpcias toda vez que acordamos de manhã

quero uma mulher que fique comigo
todo o tempo que esta me amar
e possamos colecionar coisas tolas
que guardamos com o tempo
como o primeiro sorriso de um filho
os primeiros passos de um neto
flores secas
bilhetes de metrô
e cartas com a letra incompreensível
um chumaço de cabelo
um par de óculos imprestáveis
uma lente de aumento
um selo
conchas de praia
bolachas de cerveja do primeiro encontro
e toda uma gama de coisas inúteis
quanto estes meus versos
que pouso no papel agora

quero uma mulher que seja tu agora
e nos séculos dos séculos dos séculos

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

infinito

Edson Bueno de Camargo

pés como mobília da casa
presos ao chão metálico
de lustro e brilho imersos
vermelho de ceras antigas

na pequena varanda
degraus de experiências primeiras
todo o céu de crisântemos secos
pétala a pétala caídas ao chão
(e sempre vivas que não saem da memória)

de lírico imenso e verniz de besouros
batentes formando retângulos perfeitos
trabalho de goivas precisas
a porta se forma de todos os quadrados
todas as voltas e crivos
linguagem geométrica
de falas atemporais

há insetos que não resistem à teia
os fios finos construtores do tempo
devoradores de carne e viço

da minha altura
o mundo era imenso e infinito

nova pele

Edson Bueno de Camargo

sinto-me desconfortável
sob esta nova pele
suas texturas ainda não são minhas
não me acostumei ao novo animal

nutro sentimentos
de sangue frio
de engolir presas vivas

sangram as partidas ao vento
em partituras de uma missa sacra
partículas de música barroca
em velame oriundos
da alma de violinos

casa de serpentes aladas
em suas penas de brilho azul
descer escadas de cerâmica aguda
que destaca a pele de meus pés

a tudo suporta a dor
o horizonte suporta o céu de carmim intenso
e a leve sensação de abandono

substitui
teto de orbes escurecidas
de noites de inverno sem luz alguma
algo de olhos de réptil observando

delicadezas

Edson Bueno de Camargo

ali descobri delicadezas entre escombros
em cidade oculta por florestas
tijolos órfãos
e mato crescendo em liberdade

todos esperam o seu momento
a redenção
a linha que se cruza
no limiar dos tempos
fronteira de espelhos pontiagudos

nossos pecados vão além da voz:
é nos silêncios que a mentira é mais voraz
formigas carnívoras a correr pelas entranhas da vergonha
devorarão a carne dos glóbulos
e beberão o sumo da íris e do cristalino
se não mirar com precisão
para as suas patas e pequeníssimas nervuras

as raízes antigas são antípodas da lógica
olhos sempre denunciarão a dor
lágrimas ocultas se revelam
quando não são queridas
menos ainda esperadas
são sim salgadas como o mar e a maré
ondas que removerão da praia sargaços e esquecimentos
e devolverão madeira de naufrágios
invadirão areias mornas sob os pés
insinuarão joelhos já perdoados
queimarão sem sombra em sol que crispa
o desavisado

há uma violência que espera sob as sombras
ódio de gárgula tomado em pedra
que não se aplacará ao tilintar de óbolos

estes só servem ao pagamento do trabalho dos remos
que impedirão de mergulhar em águas torrentes e turvas