quarta-feira, 25 de abril de 2007

obsidianas

Edson Bueno de Camargo

1

pulmões plenos de líquido
alvéolos em pedra ar pedra
obsidianas agudas cortantes
substituem dentes e pontas de flecha

o sonho neolítico acorda agora

2

e se quem sonhou a civilização acordar?
desaparecerão prédios e automóveis?

pássaros de sonho
presos à gaiola de teia de aranha
penas e pedras brilhantes
para brincar com espíritos

3

batráquio humano urbano

arrancar a primeira pele
tudo membros limpos
movimentos involuntários

esfolados vivos
não se distinguem batráquios de humanos

4

o umbigo é uma fonte
que jorra dia e noite
mesmo depois que o rio foi cortado
e seu corpo doce e viscoso
decepado pela barriga
não fala mais

ocarina

Edson Bueno de Camargo

meu avô materno tocava ocarina
um pedaço de barro que soa como um oboé
por mais que tentasse
nunca consegui imitá-lo
tocar ocarina foi meu primeiro de sucessivos fracassos

sempre me acreditei raiz
do que troncos e galhos
dormir sob a terra traz um certo conforto
que troncos e raízes não me perturbassem
mas os brotos insistem em nascer
espiando para fora da terra

está é a natureza de brotos e galhos
nascer continuamente e crescer
dando novos brotos e galhos
nascer continuamente e crescer
dando novos brotos e galhos

agora me vejo também broto e galho
da grande árvore que sustenta a vida

conduz-me pela mão uma avózinha
seus olhos faíscam fogueiras antigas

eu
que acreditei que a poesia me redimiria
entendi que o círculo habita no ventre do compasso
assim como o nascimento do círculo gera também o compasso
pois seria senão somente um objeto
compasso
antes do nascimento do círculo
um fetiche sem razão e sem sentidos

tomemos pois doses do grão
assim nós que seremos terra
poderemos ser bebidos um dia

quinta-feira, 19 de abril de 2007

criatura tocada

Edson Bueno de Camargo

para Mia Couto


num orifício nas mulheres
um fogo que vem desde o primórdio dos tempos

e este fogo bebe toda a água que cabe no pote
seca o regato
diminui as margens do rio
e terás que buscá-la em outras aldeias

mas
nem que me tragas toda a água
que é possível obter
não saciará a sede
do fogo das mulheres
pois possuem-na de todos os tempos

e assim cozeram homens e toda a civilização
plantaram o trigo
e cobriram nossa nudeza
sem o qual seríamos rudes caçadores

e quando um homem tenta alcançar para si
o fogo
é necessário morrer como homem
nascendo no momento seguinte
como criatura tocada

humanidade

folhas gaivotas

Edson Bueno de Camargo

estremecem as estações do ano
com o peso do óleo das penas
sob o peso do ar em seus ossos

pois papel dobradura
carrega locomotivas em suas entranhas
e pesa o vapor envolto em correntes de aço

domingo, 8 de abril de 2007

eco

Edson Bueno de Camargo

das pontas dos minaretes escorreram teus olhos
que a maré trouxe pedras pontiagudas
e rostos enfumaçados

deu-se o sílex das pontas de flecha
neolíticas extremidades da língua
de serpentes


viajar sobre a areia quente
refresca o senso do caldo
lua corrente sobre às águas
do oásis

o deserto perfura nossas línguas
com o outro adorno
que carregas em teus seios

sobeja água permanente
e pobre
cabelos lisos na testa
as luzes do fundo do ouvido

cai uma maçã no eco do Hades

de resto

Edson Bueno de Camargo


o toque da pedra
suave como a dor
mistura com sangue
a terra e o tempo

areia lisa e caótica
simulacro de mesas postas

potes quebrados
odes ao vento desta noite
e escárnios aos das anteriores

cabaças com água pela metade
de resto
teu beijo com gosto de anis

domingo, 1 de abril de 2007

margueritas às três horas da manhã

Edson Bueno de Camargo

batem à porta e não serão atendidos
os nós do carvalho soam como sinos de bronze
há um corvo morto no jardim
que deixará de assombrar meus sonhos

tulipas maduras são hélices de fogo entreabertas
como vôos de andorinhas canadenses
atravessam o continente até a porta de minha casa
nas árvores com flores amarelas em minha rua

três cavalos negros e paramentos militares
três cavaleiros alinhados portando sabres
bandeiras de guerra
em carros de ferro e rodas ruidosas

crianças bradam sua liberdade
sem perceber o incômodo que não cansam

o asfalto das vias que se continuam
paralelas em algum ponto se interromperão
o brilho da couraça do besouro
a fuligem de suas patas
conduz a precipitações metálicas da serena tristeza da noite
quando em Berlin clarinetes conduzem arrepios
o frio estridente da Alexander Platz

ferro frio

Edson Bueno de Camargo

vós que mastigais folhas de ervas
e as próprias línguas-galho
proliferam o fumo
de louro e vulcão

vicejam em teus olhos
todos os tempos mudos
pergaminhos de palavras que não formaram escritas

vestígios de caos e caldos
frutificam videira dentro
do útero
a vinha dos menestréis de olhos vazados
a lírica sem cordas das pedras ocas
passadas ao ferro frio de um lírio