quarta-feira, 25 de outubro de 2006

vidro sob a pele

Edson Bueno de Camargo

sente
o vidro sob a pele
ferida sem cicatriz
verniz oco e opaco

a morte feita em pedaços
pecados mornos
resina doce translúcida




não fazem anos as mortes não acontecidas
plano sobre plano espelho
e as tardes como noites vazias
tentavam falar girassóis

e seu todo vermelho
encimava em verões natimortos
brancos como a manhã em que te conheci

segunda-feira, 23 de outubro de 2006

prisma

Edson Bueno de Camargo

apoio no prisma, te
a luz dilacerada e dolorosa
do banquete de miríades
das rosáceas multicores
mais azuis do que vermelhas

a casa envelheceu mais um pouco
suas rugas trincam o reboco
do jardim
suas cores esmaecidas
nos convidam a dormir

lavei os escolhos
sob o bronze da torneira
e a água pareceu-me ainda turva

meus olhos de não ver
ter braços e pernas para não andar
sempre sob a luz da lua
nunca sob a luz do sol

vidro de três cores

Edson Bueno de Camargo


aves heráldicas
decoram o ar da manhã
azul sem pontas
fios da fina tapeçaria

Remédios Varo pendurada na sala
e suas lentes de olhar escuro

o tempo (Cronos) após sua morte
Netuno emasculado
tornado Saturno de nossas melancolias

o cinzeiro é vidro de três cores
das quais o azul-verde tem mais reflexos
fundo das garrafas
cujo vinho foi entornado nas fontes

embriaga
o sexto sentido
andar sem luz entre os vestíbulos
descrever o braile escrito sob a casca das árvores
pequenos orifícios antevistos
insetos cegos que por fim a matarão

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

úmeros presos

Edson Bueno de Camargo

1-

úmeros presos
atados a nódulos calcificados

2-

calcinados passeios públicos de Pompéia
o desespero preso a rocha vulcânica
leituras de corpos na pedra

3-

e tu além disso me espera
enquanto conto os grãos de areia desta praia
fragmentos finíssimos de quartzo
pontos negros de turmalina

4-

minha mãe olhou com condescendência
a toda esta minha insanidade
enquanto fui embora sem ao menos lhe dar adeus

sábado, 7 de outubro de 2006

bandeiras navais japonesas

Edson Bueno de Camargo

1-

circundar sobrancelhas com a ponta dos dedos
toque suave quase não
beber cada arrepio
o tato da pele dos dígitos
tomar para si as células sensíveis do outro


2-

as roupas no varal
flâmulas coloridas
seriam bandeiras navais japonesas


3-

o jardim derrama crisântemos brancos e dálias amarelas
nos granitos da calçada

quinta-feira, 5 de outubro de 2006

cerejas como no verão passado

Edson Bueno de Camargo

se a ti perverso caminha na beira da navalha
cerejas como no verão passado
sempre depois da chuva de flores estrelas

na china branca
prato sobre a mesa
certo brilho de prata
edulcorar o mesmo medo que na nova se encontra

o chiar ainda procura o chá
xícaras com florzinhas azuis

o gato dorme tão próximo ao fogão
que sonha alcançar o fogo

aquele que carrega nos olhos

devoções

Edson Bueno de Camargo

tulipas, tubérculos e mesa sempre posta
a espera de visitante
esse
nunca chega
sempre a espera

caixas de tralhas
carretéis vazios
berloques quebrados
botões diversos
tesouras sem corte
e cacos de cerâmica azul

holocaustos pelo café da manhã
olhos inundados de marés
cáusticas palavras
e ilações

imolações do pão e da manteiga
café preto e lento
uma faca perto de estar cega
um pote de barro antigo
mas que ainda carrega a indução do fogo
(Nero na escuta)

ouro na ponta da vela
devoções

no facho de luz
último que foge desta tarde
iridescente
contempla galáxias