segunda-feira, 28 de maio de 2007

sucumbiram

Edson Bueno de Camargo


tranquei uns gemidos em gavetas
e uns sussurros em caixas de papelão

no sótão tens objetos que ocupam (as caixas)
estas que se acumulam
e se devoram

guardar lembranças é matá-las
em sua essência
colocar o sumo da memória em estanques
Psique peregrinando entre os templos de Demeter


quartos de guardados são cemitérios de almas
não há paraíso para reminiscências
há sempre improvisos de inferno
tentação de olhar para trás

(sucumbiram Orfeu, a mulher de Lot, as vítimas da Medeia)

há sempre o risco de se tornar uma estátua de sal

sangue como tinta

Edson Bueno de Camargo


assim se usasse sangue como tinta
talvez impressionasse os olhos dos ouvintes
e em grande pompa entraria na arena
onde outros imortais esperam

mas
de que adianta ser sob a sombra do ostracismo
por que fazermos tudo isso
se isso não é aquilo que esperam?

tu esperas dar poesia aos que não tem pão
mas poesia não se come
não cobre o corpo para dormires
mal serve de alento para as dores
e o cansaço do dia

ai daquele que confia sua dor aos outros
mal aventurado o que mente
o que planta sementes em terrenos estéreis
o que busca água nos desertos
o que despreza o mar por ser grandioso
e busca alento nos regatos das montanhas

o poeta e o louco da aldeia tem o mesmo destino
de acreditar que insensatez é verdade
de ter poder de criar mundos com palavras
melhor o palhaço que faz rir
e ri de todos
guardando o choro para o escondido das cortinas

sexta-feira, 18 de maio de 2007

nunca te escrevi um soneto

Edson Bueno de Camargo


Belo tal qual o sumo dos poemas
Para elevar minha alma além do gozo
Jorge de Barros


nunca te escrevi um soneto
desta chuva de setembro, teus olhos
da primavera entrando nos poros
de maneira líquida e insone

flutuo no vácuo da morte
se te enchem luminares de lágrimas
afogo-me nestas poças salgadas
abandonar-se à maré que me trazes

nunca te escrevi um soneto
não pela falta de desejo
mas pelo fato de incompetente
estar permanente mutilado pelo verso

então te cantarei ao meu modo
em odes confusas, quebradas e incompletas
trovador, menestrel ou bobo da corte
pois és majestade em minha insolente existência

eis que te amo acima de minhas incapacidades
que na ausência de sonetos
buscarei nas tardes quentes do verão
ser uma brisa em teus cabelos

na inexistência da métrica
serei a medida de teus passos
ser a estrada em que caminhas
tornar-se suave para teu andar

na impossibilidade da rima perfeita
ser o cântico que te embala ao sono
verso inconcluso, cobertor de estrelas
Urano todo ciumento de tua amada

diadema

Edson Bueno de Camargo


teu sexo
uma flor aberta para o Sol
onde o sal flúor relampeje
e cegue os néscios que carregam
dardos cravados ás costas

teus seios órbitas perfeitas
carregam constelações estelares
no leite de teu colo

tu perfumas minha presença
que dispo a baila
a barca de sombra e cheiros sombrios
tua carne me faz carne
e a ti pertencem as duas


usa este diadema
como corola de espinhos
o sangue lavado das costas
serve como vinho
verte prata destas lágrimas
e dá aos pobres da terra


cânticos parados no vento
uma monarca migrando contra o verbo
teus cabelos roçando em meu peito
anátema dos silêncios oclusos

para uma única palavra
negava o fogo aos homens
para adornar os teus pés
e destruiria e reconstruiria o mundo
tantas vezes fosse necessário
retornaria ímpio entre os meus
com tu viveria o desterro no deserto

mas não
nem um único sibilo cingiu os teus lábios
um sorriso que fosse


então me pari homem e menino
e me tomaste no regaço de teus braços

domingo, 6 de maio de 2007

silogismo

Edson Bueno de Camargo

a nervuras das asas da borboleta são alinhadas pelas paralelas do ponteiro do relógio
todos os ponteiros de relógio são afiados conforme o ângulo do extremo dos obeliscos
portanto para cortar as nervuras da asas da borboleta são necessários pontas de obeliscos.

cruz espelho

Edson Bueno de Camargo

1

homens de areia
se dissolvem na praia
sempre ali nunca estiveram

pedras rosetas para recontar meus sonhos
de forma que os leões façam tanto sentido quanto a pedra
na cruz espelho atirada ao longe
pelo ancião que a cada dia me torno

o ácido vento que no tempo fez guarida
pintou o telhado de minha casa
com a flora de algas

tons de verde que se estendem
numa minúscula tundra
florescências e florestas minimalistas

2

este crescente que se derrama
sobre meus cabelos
e permitem a estes o branco

eqüinos se formam no substrato
de solos vermelhos

conto cavalos de areia
que irrompem
cargas de cavalaria
cavalgadas de vento sem esporas e celas

3

bailam demônios em meus ouvidos
e seus ossos brilham como ouro sob a pele

curvo-me com as vergas do teto
acendo minha pira funerária
desato de minha língua o verbo

busco em tua boca aquilo que faz meu sentido

para o abismo

Edson Bueno de Camargo

crio borboletas com os olhos
quais às vezes dependuro em janelas para o abismo

e recorto o orvalho
em jarras de alabastro

e carrego os contrários
em minhas costas

as vidas que vieram a minha casa
recebi todas
ao meio dia foram embora
minha casa ficou sem vida

eis que tudo ficou
o sentido
a casa
as borboletas
e o orvalho