segunda-feira, 21 de setembro de 2009

indiscutível

Edson Bueno de Camargo


há um desenho
perfeito em teus olhos
de acumular pedras da estrada
e icebergs a deriva

água pura
a salvo
para que se tome
um chá de gosto indiscutível
antes de se morrer

recados de pedra




Edson Bueno de Camargo


acumulam-se pedrinhas
onde goteja o telhado
bizarras arquiteturas
se desenhando
a bica encontra sempre
o mesmo lugar para pingar

a areia as trouxe de longe
de outro tempo e lugar
são recados de pedra
a empilhar coisas sem valor
segredos absortos
abortos
abertos

está frio e solitário aqui
pouco ou quase nada mudou
dos tempos em que os joelhos eram rotos
as idéias ralas
e o coração puro
quando a dor não era trabalho de cantaria

o sentir das idades
é uma fada senil
os tesouros perderam seus mapas

(o coito das cabras
não faz sentido também
e estão elas ai
a se multiplicar)

pedras nuas

Edson Bueno de Camargo

corpo de tesoura
(de metal animal)
de corte regular
de linhas femininas girando ao eixo central
destas de coser carnes
sangue em pequenas pedras
a língua mergulhada em aço reluzente

doando ao ar todo o espelho
espectro de dias e horas
o livro que contém todos os nomes
que nas bordas trazem profecias
de vates infantis e incompletos
de bandeiras em frangalhos

as fotografias espalhadas no lençol
tudo em desalinho o quarto
a janela de vento e cortinas vivas
o recorte da vida
em meio a uma descoberta tétrica

a tentativa de racionalizar o medo
enquanto o vento dobrava as bananeiras
e o quintal se transferia ao poucos para o futuro
e depois o esquecimento
em uma máquina de devorar a si mesma

nunca mais houve um dia como aquele
e o gosto de menta doce e pedras nuas
calor morno subindo a espinha
fôlego parado em afogo
quase um útero por um segundo

lua de água azul
e sempre a mesma memória

(quando nasci não chorei
arrancaram-me da morte sem meu consentimento)

desconstrução

Edson Bueno de Camargo

em que se dá
a construção do suicídio
nos três aspectos do abandono
ocaso das horas
silêncio do mundo
e ausência do verbo

a língua inflamada de vocábulos
que não são ditos
pesada corrente
que é o viver mesmo depois de morto (o sentido)

a palavra presa ao céu da linguagem
feito uma lanterna japonesa
um balão noturno antes da chuva
cintilâncias orgânicas
verdes noturnas

todas as redenções estão perdidas
todos os pássaros voam com navalhas
que cortam o ar e as veias
em asas de ruflar cirúrgico

os corvos buscam
os corpos dependurados
abismados
encharcados de rios e de pedras nos bolsos

os chocalhos das cascavéis
dizem um tanto
há algo indigesto no farfalhar das folhas
som lento de fogo se alimentando
de veneno fermentando nos dentes
vinho que nunca será bebido

na desconstrução do corpo
não há razões perceptíveis ou necessárias

nunca houve de fato um sentido no mundo

comágua

Edson Bueno de Camargo

ao primeiro passo antes do abismo:

qual o roteiro para o fim dos infernos?
como se dá de comer aos nossos monstros?
como se cultivam ervas amargas?
qual o veneno que me serve ao suicídio?
quando uma donzela deve dispor de sua honra?

quando a palavra fincada no desvão da mente
refluirá comágua nova da fonte?

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

tenho sapatos rotos




Edson Bueno de Camargo


Poema conversando com Leonard Cohen

riscados de pedra e ladeira abaixo
tenho sapatos de pedra branca
e a terra insalubre de minha infância
o saibro que se desfazia ao vento e a água
e da infâmia acústica de meus ouvidos

tenho os pés lavados de agora
na torneira da chegada
e asas de santo vagabundo de estrada

tenho a beatitude do agora
e o medo obscuro que nunca me chegue a morte

tenho asas dobradas dentro de sapatos rasos
rasgadas à seda de uma lágrima
calçados de caos e areia diluviana

antes a dúvida perturbadora
dos incensos e sírios nas igrejas
da fé não respondida
à certeza que carrego agora

folhas de vento

Sítio : Xique-Xique I - Carnaúba dos Dantas - Seridó - RN


Edson Bueno de Camargo


a lua se quebra
em penhascos de faca e gelo vivo
escamas de turquesa fina aguda
plumário de serpente

folhas de vento
suçuarana de sopro
suave fumaça leve
que dá vida ao barro

irmão coiote
caminha sobre as línguas da pradaria
sobre as pegadas dos que já são extintos
dos que sempre estarão

onde o velho jaguar pisa
nasce o caminho
que se revela
a bíblia do homem não é mais a do animal
desfez-se a harmonia
as manchas das costas de felino
escrito está o nome da criança deus

porção branda da brisa
serve de alimento
às dores da rocha mãe
o parto do tempo
areia esculpindo o mundo
a cria dos peixes à superfície da água
respirados pelo grande espírito
que é pai e mãe ao mesmo tempo
inflamam os pulmões da terra
cultivam vida até onde se pode levar

tornar a lembrar o que vai acontecer
que a chuva já caiu aqui ontem
e cairá lavando as dores e o medo
por pior frio
há primavera
alento e cores

soa o tambor dos olhos
soa o coração nos dedos
soa o trovão
chuva que chega
volta sempre a carne para meus ossos

xamãs

A Rosa Significa a Primeira Matéria, a Quintessência


Edson Bueno de Camargo


o poeta é sacerdote
da própria religião
xamãs inebriados
pensam enganar a realidade
na tentativa de ludibriar a morte

clérigo imoral
sua ética
incorpora as realidades de todos os mundos
e outros ainda

como Hermes ou Exu
pendente entre as cosmogonias
carrega mensagens dos deuses
(para cima e para baixo)

um bom poeta só o será
ao encarar a sua extinção pessoal

Rimbaud foi
bruxo a seu tempo
usou a extinção de sua quintessência
e fez poesia além da palavra