quinta-feira, 7 de junho de 2007

uma concha

Edson Bueno de Camargo

uma concha contém um universo
nos desenhos de sua estrutura
um infinito se soma
aos números que se repetem

puxa o fio do começo
retorna a mesma meada
une-se onde tudo termina

quantos quilômetros caminha
uma formiga, por dia?
e não percebemos caminhos traçados a frio

porque somos um grão de nada
o pó que se assenta sobre uma partícula de areia
diante das distâncias das estrelas
e nos achamos superiores às formigas

o universo nos esmaga sob os pés
enquanto caminha distraído

daruma

Edson Bueno de Camargo

I-

nunca lhe dei olhos
um: esquecimento
outro: a dúvida


II-

meu neto me fala numa língua incompreensível
as formigas carregam as pétalas
das rosas de agora a pouco

enxergo o passado pelo avesso
e o futuro como acontecido
a morte é doce como se afogar
ou ser enforcado pelos pés

os rios transbordam em pernas
lambem as coxas ao acaso
tentando alcançar o sexo


III-

os meninos carregam meu caixão
cantam alegres canções de ninar
(para alguns é visível que estão bêbedos)

de repente sou tão pequenino
um precoce sensível
em um esquife para passarinhos


IV-

os ratos correm em minha boca
os vermes passeiam em meu nariz
estatueta de cerâmica
o bule posto à mesa
para o chá da meia-noite
o infortúnio dos quase mortos

a terra come olhos como sobremesa
são doces e salgados ao mesmo tempo
e soltas suas luminescências no escuro


V-

secas vidas em corredores
resíduos de sangue
o cheiro acre de clorofórmio
formol em pequenas doses
resina de álcool e codeína


VI-

tuas unhas eram duras como a pedra
deste modo se converteu meu coração

trilhas

Edson Bueno de Camargo

1-


trilhas de luz
jornada de caracóis
o sêmen em novo colchão

nosso amor prescinde de fala
o fogo interlocutor pelos espelhos
ouro fundido ao vidro

mais medo nos dentes
costura fina e delicada
tua mão guia a minha
intercala terror servil e gozo

o homem sempre será uma mulher incompleta
lâmina de espada como assento confortável
debulhar girassóis em pleno evento
tirar sementes do Sol com as mãos
retratar corações em plena evolução
estalar de calcanhares nas pedras


2-


tomar o café da manhã numa avenida de Roma
comer o mesmo pão que o Papa
transportar aquários sobre a cabeça
e caixões sob os pés
a cauda do dragão nas pedras miúdas

falsas disposições encharcam as eras
o erro fato verdade
a língua como órgão sexual
a palavra como falo

três folhas da árvore da vida
fica faltando o avesso da mentira
ouvido mouco de assustados
o som rouco dos enforcados

meu coração pesa mais que uma pena
o céu deve ser frio e vazio
uma vez que nunca faltam pecadores


3-


teus olhos são parentes do fogo
em tua fúria

não quero ser árvore que enfrente este vento
e ter as raízes expostas à vergonha

prefiro ser o mau artesão
que costura finas palavras
à lantejoulas de plástico

quero teus lábios mais para a doçura
edulcorar o castigos de deuse(a)s

terça-feira, 5 de junho de 2007

peixe fóssil

Edson Bueno de Camargo

1

rachar o horizonte
com machados de obsidianas
o fio agudo do vidro

do risco
extrair das estrelas
diamantes


2

eis que trezentos anjos se ausentam
os dias apresentam a catástrofe
acresce-se o pó dos cometas
o eco da tormenta
às sandálias dos peregrinos

o peixe fóssil na pedra
escamas de puro cristal
contra o desaparecimento, nada

3

o homem simples esquece
o dia anterior
o jornal da manhã é outro
a mulher que fuma à sua frente também

(aranhas fiando o tempo/
areia escorre lenta e gradual/
no embolo da ampulheta)

quelônio

Edson Bueno de Camargo


quelônio ao Sol
coração de três cavos
batendo desde a aurora do mundo
tambores ancestrais
fluxo sangüíneo do tempo

fatias de abacaxi secam perto da noite mordente
quintal varrido
o som oco de tardes desmoronando
(sentado no degrau da cozinha
observa)

o cruzeiro no brilho do dia
o céu violeta encobria violências
torção de torrões
o chão úmido de lágrimas e sangue

(me engasgo no leite materno
a exatos 45 anos)
não gostava das calças curtas que minha avó costurava
aprendia solidão com a lição dos olhos

a gestação nos corredores da fábrica
peça de reposição de porcelana