sexta-feira, 31 de agosto de 2007

toda a luz

Edson Bueno de Camargo

este poema
fragmento de estrela
mergulhando em um buraco-negro
na sua extrema agonia
da gravidade presa na palavra
da língua inflamada em gazes estelares
da gangrena da sintaxe e do léxico
de cálculos de astrônomos imprecisos

que o juntar de letras
lapidadas em pedras
é desalento e desterro
e estas dormentes nos signos obscuros
se perdem entre o significado e significando
poço que percorre os diversos mundos e as dimensões
de tão escuro que absorve toda a luz

metamórficas

Edson Bueno de Camargo

a poesia, objeto fetiche
árvore vodu nos jardins de acácias e bétulas

aves metamórficas
voam com bexigas natatórias de peixes vampiros
lampréias de dentes afiados e sede insaciável
criaturas primevas de tempos sem memória
serpentes emplumadas sob o sol venusiano
pirâmides astecas sobre o solo de outro planeta

figuras aborígines
terraços de terra do sonho e pedras do deserto
cobertos de terra vermelha
óxido de tudo o que é enferrujável
tatuagens e sinais de branco intenso
mãos espalmadas e lembranças do improvável

amuletos de sangue de irmãos amados
dentes tirânicos de ferro de irmãos armados
titãs lamentosos de suas desgraças
nós humanos os seus filhos
e todos os alijados da palavra
vítimas de incontáveis silêncios
esperando que o verbo nos redima

na pedra do primeiro sacrifício
imolam-se os mesmos dedos inexatos e infanticidas

abismo

Edson Bueno de Camargo


a morte é a pior das solidões
liberta o sentenciado e condena os vivos
nada mais natural que o horror
diante do que não podemos controlar

aqui me abandono
sou alcançado pela preguiça e desespero
deito em solo estéril
tentando voltar às origens
sufoco presságios e arbítrios
liberto o animal com meu nome e meus pecados

eu, guardião da porta dos condenados
Cérbero de três cabeças coroadas
dono de toda a desolação e avareza
não pedirei perdão em momento que seja

há lugares onde o abismo aproxima a todos
tão antigo que pode ser tocado

sábado, 18 de agosto de 2007

azul

Edson Bueno de Camargo

no fim, tudo é uma questão de pele
centímetros quadrados de sensibilidade
em busca da possibilidade de toque ou de dor

depois os pêlos
a dobrar em arrepios ao quase contato
beijar o fogo e sentir seus dentes com a língua
beber teu líquido como mel

esculpir rosas na carne de minhas costas
corações e entrelaçados celtas
tuas unhas
bisturis de queratina escarnada
escorpiões com ferrões de fogo
a correr da nuca aos calcanhares

quando acordar e for embora
não esqueça de trancar a porta
para que a rua não possa entrar neste quarto azul

eco

Edson Bueno de Camargo


a construção do eco
tijolo por tijolo de escuro
a cortina embebe o sentido
se embota em silêncios taciturnos

dois mil passos até a casa
a rua em quase solidão
pisar na manhã molhada

a madrugada urde fumaças
chaminés são quase árvores
rouba-se o tempo de uma lágrima
tempo dos que já se foram
a lama da ordem chama-se caos
lembrar é já ter esquecido
a chave preciosa enche a manhã

furacões

Edson Bueno de Camargo

resta uma réstia de luz

e as folhas se acumulam no quintal

é voraz a fome do vento

devora papéis velhos e sonhos que estão soltos

no outono de lua azul

o corredor é a desolação da tarde

do mesmo modo que campeia

a noite que está por vir

o ventre inflado

de tristeza morta e apodrecida

os galhos da árvore acenam

são fantasmas vistos pela janela

e o medo do escuro recorda a infância perdida

no beco feito de álcool e naftalina

vergões nas costas: água, vinagre e sal

dividi o pão dos esquecidos e amanheci novo e velho

perdido feito uma criança em meio a tantas guerras

cabelos brancos e falta de senso de direção

os olhos não aprenderam nada

e nada tem para ensinar a mão

ouvi então um coro de anjos tortos

entoavam um blues para New Orleans

quantos furacões a devastar nossos corações